Neste março tão amargo para os brasileiros, falarei um pouco de um homem doce: Antônio Maria. Dia 17, transcorreu seu centenário. Quem não o conhece, muitas vezes conhece suas canções imortais. Quem não o conhece, perdão, deveria conhecê-lo. Felizmente, em 2012, por iniciativa do vereador Jurandir Liberal, a Câmara Municipal do Recife “transformou-o” numa bela praça em Casa Forte. Por ali hoje passeia o seu espírito de recifense e de carioca. De carioca, sim, e dos melhores, dos intensos Anos Dourados do Rio de Janeiro, onde sua criatividade floresceu ao se multiplicar em criador de shows, humorista, publicitário, músico, cronista, repórter e locutor esportivo.
Na crônica, o “bom Maria”, como o chamavam, situa-se entre os mestres do gênero: um Rubem Braga, um Paulo Mendes Campos, um Drummond. É do primeiro time, e não é raro encontrar numa delas os gols de placa que marcava. Golaços de inusitadas observações líricas, de espírito humorístico, de frases certeiras. Algumas dessas frases até se tornaram anônimas, tão repetidas que foram Brasil afora. O exemplo clássico é esta: “Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta”. Em várias crônicas, evoca o Pernambuco e o Recife que deixara para trás na juventude. O Recife das regatas da Rua da Aurora, das longas procissões católicas, dos Carnavais tão tremendos quanto inesquecíveis. Leiamos (com perdão por algumas supressões, de resto dispensáveis) um trecho antológico de uma crônica do ano de 1964:
“No Recife, o Carnaval começava no Natal […] A 24 de dezembro, os blocos saíam à rua, com suas orquestras de trinta a quarenta metais, seus coros de vozes sofridas, a tocar e a cantar as ‘jornadas’ mais líricas. Chamavam-se ‘jornadas’ alguns dos cantos carnavalescos do Recife, talvez por influência das ‘jornadas’ dos pastoris. […] Não se pode fazer ideia do que era o povo do Recife, solto nas ruas do Recife, após a declaração irreversível do Carnaval. Faziam parte da corte imperial mulheres morenas, que suavam, em bolinhas, na boca e no nariz. Mulheres de olhos ansiosos, presas de todos os atavismos de religião e de dor, a dançar a mais verdadeira de todas as danças — o frevo”.
Que frase forte e fulgurante essa última frase, e tanto que vale a pena repeti-la e inscrevê-la em nosso orgulho pernambucano: “[…] a mais verdadeira de todas as danças — o frevo”. É frase de se por numa placa em uma das melhores ruas do Recife ou na praça que leva seu nome em Casa Forte.
Ele próprio, quem não sabe?, tornou-se compositor de frevos imortais. Hoje não há Carnaval, bom Carnaval pernambucano, sem que se ouça e sem que se cante seu “Frevo nº 1”, cuja letra é um hino de saudade a fazer chorar e vibrar milhares de foliões:
“Ô Ô Ô saudade / Saudade tão grande / Saudade que eu sinto / Do Clube das Pás, do Vassouras / Passistas traçando tesouras / Das ruas repletas de lá / Batidas de bombos / São maracatus retardados / Chegando à cidade cansados / Com seus estandartes no ar. / Que adianta se o Recife está longe / E a saudade é tão grande / Que eu até me embaraço / Parece que eu vejo / Walfrido Cebola no passo / Haroldo Fatia, Colaço / Recife está perto de mim”.
Antônio Maria também é considerado “o maior cronista da noite carioca”, a noite dos artistas e dos boêmios que, no livro “A noite do meu bem”, encontrou em Ruy Castro o seu maior memorialista. Nesse livro fantástico sobre a história do samba-canção, Castro registra que, certo dia, Antônio Maria confidenciou a Nora Ney que “[…] era compositor, mas ainda inédito — nunca tivera uma música gravada. Mostrou-lhe ‘Menino grande’, que havia composto para embalar a si próprio e gostaria que, um dia, uma mulher a cantasse para ele. Nora prometeu-lhe que, se viesse a fazer um disco, essa seria a primeira música que gravaria. Cumpriu a promessa pouco depois, em abril de 1952 quando fez seu primeiro disco, na Continental […] Maria chamara-o de ‘samba-acalanto’, mas era um legítimo samba-canção”. Anos depois desse primeiro sucesso, comporia outros clássicos de nosso cancioneiro, inclusive o popular “Ninguém me ama”, cujos versos pungentes se tornaram praticamente anônimos:
“Ninguém me ama / Ninguém me quer / Ninguém me chama / De meu amor / A vida passa, e eu sem ninguém / E quem me abraça não me quer bem. / Vim pela noite tão longa de fracasso em fracassso / E hoje descrente de tudo me resta o cansaço / Cansaço da vida, cansaço de mim / Velhice chegando e eu chegando ao fim”.
Mas, ao contrário do que seus versos sugerem, o “bom Maria” nunca esteve perto da velhice, pois morreu, fulminado por um enfarte fatal, com inacreditáveis 43 anos. O ano era 1964, um ano pesado…
Sinto muito aqui ter de abreviar os sucessos e a vida inquieta e exuberante de Antônio Maria, oferecendo aos leitores não mais que uma modesta aquarela. Maria é tema para livros, para longas degustações, para um convívio permanente. Concluo com o próprio poeta meditando sobre a morte com palavras em que não faltam bom humor e sabedoria: “Morrer é não precisar de mais ninguém. É ser, até que enfim, independente mesmo […] Todavia o certo é morrer o menos possível e sempre à última hora. A independência é a pior de todas as solidões”.
Para “morrer o menos possível”, aconselho Antônio Maria.
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