Você passa mais de um ano fora do Brasil. Não por mero capricho, mas por entender que é a única forma de se salvar na pandemia. Você precisa de um país sólido, confiável, avesso a dogmas, refratário a bruxarias, pró-ciência e infenso a micro cálculos políticos por parte dos dirigentes. Com uns 4 na lista, eu optei pela França. Lá você vive todas as agruras e todas as regalias de quem podia confiar no que ouvia, sabendo que sua vida não seria reduzida a moeda de troca pelo projeto de poder de um bando. A vida de exilado sanitário, é óbvio, tem altos e baixos – muito mais os primeiros do que os segundos. Passam-se os meses e você pensa: uma vez vacinado, vou embora cuidar da vida real. Ou do que restou dela, o que não é muito. Mas se sobrou vida, tout court, tudo bem. Então as etapas são cumpridas. A vacina é anunciada. Começa a campanha. Você consegue sua primeira dose. Pinta no horizonte uma luz. Depois da segunda dose, você pode abrir a contagem regressiva – então ela vem. Vamos contar um mês? O tempo passa e você diz: que tal viajar lá por 20 de março? Sua agente de viagem manda a passagem do jeito que você pediu. Começam os pequenos ritos de adeus. Sendo o último deles um teste PCR para a viagem. Você se diz: quando eu fechar a porta, colocar a chave sob o tapete e entrar no táxi, um ciclo estará terminado. E com o cartão de embarque na mão, eu serei um dos homens mais felizes do mundo, mesmo que esteja voltando para um hospício. Quando carimbam seu passaporte, vem a sensação de irreversibilidade. Os sentimentos são dúbios. A França que tanto me deu, deu mais esta. La vie. Merci.
Mas eu estou aqui para falar da euforia, não é? Chega então a hora de embarcar. Você é dos primeiros a se instalar e sabe que dali em diante o jogo é conhecido. Que, salvo um desastre, e apesar dos contratempos causados pela Covid, você é doravante uma pessoa livre. Ou tão livre quanto alguém pode pensar em ser nesses dias. Está vacinado, minimamente saudável, todos os seus sobreviveram ao cataclismo e você vem de uma temporada que rendeu frutos, onde você trabalhou duro e geriu bem o lado psicológico – coisa que nem todo mundo consegue. Bem, você ainda tem uma escala a fazer antes de pegar o voo que o levará quase à porta de casa. Você pensa: quando chegar em Istambul, vou me sentir o mais livre dos homens. Vou dar uma carreira naquelas passarelas, vou gritar e dizer: Brasil, estou chegando. Mas nada disso acontece. Parece que é mesmo chato envelhecer. As emoções não brotam como o previsto, frustram os instintos reprimidos. Tampouco é insuportável a saudade de sua cama, de seus cômodos, das paredes que, silentes, testemunharam suas dúvidas e angústias. Você entra em território brasileiro sobrevoando a capital capixaba e pensa que vai sentir um mínimo de frêmito, mas nada acontece. Só resta mesmo concluir que só há emoção quando ligada a pessoas, a entes queridos que você tenha deixado para trás e não vá mais ver ou então que o aguardam na cidade de chegada. Não havendo disso uma carga expressiva, as passagens sobre os fusos horários, a travessia de dois continentes, enfim, tudo conta bem menos. Salvo as saudades da vida de antes que o tempo se encarrega de diluir com Sonrisal na água.
Quanto ao que virá, o que tiver que ser, será. Importante mesmo continua sendo viajar para dentro – a mais euforizante das viagens, aquela para a qual não se precisa de passaporte vacinal ou de formulários da Anvisa. Mesmo assim, me pego matutando sobre a janela escolhida para a chegada. Foi a mais adequada? Pelos fatores externos brasileiros, certamente não foi. Pelo meu relógio interno, sim. Quantas vezes não perguntei às pessoas como estava o panorama? Quase todos me responderam que a vida era quase normal, que havia restrições, mas que o país funcionava. Se fosse uma decisão crucial, eu teria sido induzido a erro grave. Felizmente não era. Resignado, vi a cidade hibernada. Menos mal que tenho tudo de essencial por perto. Nessas horas, São Paulo se aguenta. Mas chama a atenção o gosto brasileiro pela fala prolixa, com tinturas de tecnocrata, uma casta que goza de muito prestígio nessas paragens, vá saber por quê. De onde veio isso? Ao invés de dizer o eloquente: “Cara, se você acha que vai tomar cerveja na calçada, trate de tirar o cavalo da chuva”, as pessoas optam por fórmulas empoladas que mesclam rudimentos de estatística, sorologia, charlatanismo e histrionismo, ademais da nefanda média móvel, a coqueluche das manchetes. Mais, parecem motoristas de táxi conversando. A um amigo, eu fui claro: bastava mandar uma foto de um bar lacrado e já teria desvanecido minha vontade de voltar agora. Preciso achar um livro que me agradou muito na época. Chamava-se “A fala dos homens: análise do pensamento tecnocrático”, de Mari Lourdes Covre. Talvez ele explique como perdemos a capacidade de dar nome aos bois. Cá estou de volta à procura de briga.
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