Tom Jobim.

 

Acordo. Puxo devagarinho a cortina. Olho o exterior. O Capibaribe cumpre sua sina fluvial. No alto, alguns flocos de algodão em nuvem pairam no céu. Então, resolvo, vou à cozinha para machucar macaxeira, esquentar, botar leite e açúcar. Ainda se ouve o silêncio de manhãs preguiçosas. Ou pandêmicas.

Nesta quarentena, não sei direito em que dia da semana estamos. Como se fôssemos desenrolando um fio incolor, inodoro. Não há dia, não há data. Só números de óbitos. E a incompetência habitual.

Tomei o banho da manhã. E pensei: o que fazer? Aulas da próxima semana estão prontas. A recomendação é ficar em casa. Olho para a mesa do outro quarto e vejo o CD de 20 Carnavais do Para quedista Real. Do advogado compositor, Humberto Vieira de Melo. Vem a ideia: escrever sobre música, sobre meus CDs, minhas lembranças com esta experiência maravilhosa que é ouvir música.

Alguém já disse que não é possível viver sem música. Bem, no meu caso, isto é fato. Amanheço no canal de clássicos da tv. No carro, tenho caixas de CDs. Em casa, trabalho ouvindo música. E, à noite, substituo a tuia de noticiários (que repetem as mesmas notícias com ênfase cada vez mais patética) por música.

Minha primeira lembrança musical é a loja Rozemblit. Rua da Aurora. Os bolachões. Que se ouvia em cabines individuais.

Depois, com as viagens a trabalho, para o Rio, onde ficam BNDES e Petrobras, e ficava o BNH, destinos da burocracia, veio a época da Billboard, em Copacabana. O problema aí era verba. Muita oferta para pouco financiamento. Mas foi o início de discos importados, de jazz. Um deslumbre.

A Bossa Nova estava crescendo. Eu acompanhava Menescal, Bôscoli, Vinicius, João Gilberto, incluindo os americanos que aderiram ao bebop tropical: Stan Getz e Gerry Mulligan. Mas meu planeta principal era o maestro soberano: Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Onde eu chegasse, fosse Rio, San Francisco, Berlim, eu buscava o exemplar que ainda não possuía. As apresentações em Tóquio, os shows em Montreux, as gravações em Los Angeles com Klaus Ogerman. Não tenho todos, evidente. Mas tenho o tecnicamente mais aprimorado deles, na opinião de Atalarico Moreda, especialista no tema: Terra Brasilis. Gravado na Warner, em 1980, inclui Wave, Modinha e uma canção pouco conhecida, instrumental, Marina del Rey.

Tenho cá minhas preferências por cantoras. E a primeira da minha lista é, claro, Ella Fitzgerald (show com Sinatra é transcendental). Abrange Stacey Kent, com bela interpretação de Vivo Sonhando. Também a canadense Diane Krall e a brasileira Eliane Elias, com bonito arranjo de Na Batucada da Vida. Entre cantores, minha primeira opção é Chet Baker cantando Sweet Lorraine.

Tenho uma queda especial por piano. Desde George Shearing a Claude Bolling, acompanhado da flauta encantada de Jean Pierre Rampal. Eles têm uma peça inesquecível: Javanaise.  

Trago comigo duas recordações de bons sentimentos. A primeira é de Henrique Annes. Toda vez que tenho chance, convido-o para se apresentar. Com seu clássico e afinadíssimo violão. Na vez mais recente em que ele fez audição e produziu CD, ele compôs um frevo chamado Pátio do Terço, dedicado a este amigo. Que quase morre de gratidão.

A segunda recordação é Memória da Música Pernambucana, produzido na Fundação Joaquim Nabuco, por Renato Phaelante. Eu sabia do valioso acervo da Fundação. E sabia também que Phaelante tinha organizado, durante anos, a fonoteca. Então, passar pela Fundação e não tocar na música seria olvido imperdoável. O Cd reúne valsa de Waldemar de Oliveira; o maracatu É de Tororó, de Capiba; Evocação nº 2, de Nelson Ferreira; o frevo de bloco, Antônio Maria, de Getúlio Cavalcanti; entre outras.

Este texto é também uma carta a dois amigos queridos que já se foram: George Lederman e Ramires Cotias Teixeira. Eles me ensinaram o que o melhor em música clássica. Lederman era Beethoveniano. Ramires era Bhramsiano. Eles me ensinaram muito. E, certa vez, em seu apartamento na Jaqueira, quando lhe perguntei qual era a peça mais bonita que ele ouvira até então, respondeu:

– O segundo movimento da sétima sinfonia de Beethoven.

Obrigado, amigos.