Em meio à fome que, infelizmente, volta à mesa do brasileiro, o ovo também volta a ocupar um lugar de destaque no prato da maioria da população. E volta barato, pois a produção e a oferta têm subido. Ai de nós sem as galinhas pátrias que cumprem com seu dever. Em várias cidades os ovos voam motorizados até à porta das casas: é o carro do ovo, que cacareja como uma galinha elétrica além de razoáveis decibéis. Tenho ganas de atirar uns bons ovos nesse carro do ovo que polui sonoramente o dia, um carro monocórdico que parece querer nos hipnotizar com seu refrão que se repete além do necessário.
Abro o “Estadão”, melhor, não abro, acesso o jornal de domingo e me deparo com a notícia de que o Brasil tem um “rei do ovo”. Pelo jeito, é um predestinado. Vejam seu nome: Leandro Pinto. Que outro não é, fico sabendo, senão o dono e fundador do grupo Mantiqueira, o maior produtor de ovos da América Latina. Diz a matéria que, quando jovem, “fazia de tudo, só não gostava de estudar”. Pinto talvez intuísse que um dia só os ovos lhe bastassem e teria que estar junto dos seus. Pois bem, com dedicação e esforço, assumiu o que viria a ser a sua galinha dos ovos de ouro: umas 25 granjas de um amigo que não mais podia tocar o negócio. Enfim, príncipe dos ovos, e, hoje, incontestável rei. O título lhe cai bem, pois os números e proezas do seu reino são pura nobreza: tem unidades de produção em Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso e emprega 2,3 mil funcionários. Deixo de propósito o número maior para o final, pois se trata do número das suas galinhas poedeiras: nada mais, nada menos que 11 milhões de galinhas! Meu Deus, parece que o homem é dono de todas as galinhas do planeta! Um mar de galinhas, um branco oceano de ovos! O empresário Pinto que, quando pobre, viajava num velho Uno, hoje voa, não como galinha, pois voa bem e voa rápido no seu jatinho particular. Deus o aumente, embora o País corra o risco de ser povoado apenas por galinhas…
Deixemos Pinto, voltemos ao ovo. Aliás, pisando em ovos, ou melhor, não pisando, porque o tema é sensível e delicado. Até diria: é lírico. Quem melhor percebeu isso foi a agora centenária Clarice Lispector. A incrível Clarice trouxe o ovo para dentro da literatura brasileira. Pôs o ovo no prato imenso de sua sensibilidade e ficou a olhá-lo, contemplando-o como inevitável evento filosófico. Também trouxe a galinha, claro, mas sem o lugar-comum da pergunta “Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?”. Pois bem. Clarice ousou e criou o texto “O ovo e a galinha”, que inseriu como um conto no seu livro “A imitação da rosa”. Não parece conto, mas uma página de Heidegger. A quem tiver apetite filosófico-literário, aconselho a saborear esse texto clariciano. Aqui vão, sem muita ordem, mas como ovos bem selecionados, algumas sentenças da escritora em torno do ovo.
“Só vê o ovo quem já o tiver visto. — Ao ver o ovo é tarde demais. […] O ovo não tem um si mesmo. Individualmente ele não existe. […] Ao ovo dedico a nação chinesa […] O que eu não sei do ovo é o que realmente importa […] Ovo é a alma da galinha. […] O ovo me vê. O ovo me idealiza? […] De ovo a ovo chega-se a Deus […] O ovo é o sonho inatingível da galinha.”
Comentemos, trazendo do prato de Clarice o ovo para os pobres dias atuais. Sim, ela tem razão, é preciso dedicar a nação chinesa ao ovo, pois a China é grande parceira comercial do Brasil, embora tão achincalhada por alguns próceres nacionais. Sim, tudo indica que individualmente o ovo não existe, sobretudo agora quando o país se afoga em ovos. Clarice sugere que os ovos são olhos: eles nos veem; sim, e alguns veem até demais e voam certeiros em direção à cabeça de políticos (este também, bom que se diga, um papel social dos ovos). Não sabemos se “De ovo a ovo” chega-se a Deus num transe místico, mas chega-se a matar a fome dia após dia, o que também eleva a alma. Por último, se o ovo “é o sonho inatingível da galinha”, por ora é o sonho atingível do pobre, e isso é grato quando a fome deixou de ser zero e geladeiras e estômagos estão vazios.
Muito bom, Paulo! Como sempre, erudito e divertido!
Obrigado, Prof. Lécio.
Abraço fraterno
Divertido é. Boa notícia no meio de tanta notícia ruim, isso de que o consumo de ovos pelo brasileiro foi de 251 ovos per capita no ano de 2020. Isso dá, para cada pessoa, pelo menos um ovo dia sim dia não, o que seria um bom índice de consumo de proteína. Mas desconfio que esse consumo foi medido pelos dados de produção, que mais que dobrou nos últimos 20 anos. Ovos são usados na produção de vacinas. Então tem que descontar essa parte. E a feitura de bolo aumentou muito durante a pandemia: um bolo de fubá é mais barato que o equivalente em pãozinho. A turma de solidários que foi levar café da manhã aos sem teto na Zona Leste fez bolo em vez de comprar pãozinho. E, neste país em que a distribuição de renda vem piorando desde 2014, há que considerar o amigo que me informou, ao ler a história do “rei do ovo”, que come um omelete francês de 3 ovos toda manhã. Aliás, não está barato não, o preço aumentou, só que aumentou menos que frango, carne e peixe.
Pois é, meu interesse pelo “rei do ovo” é bem diferente da “filosofia linguística” da Lispector. O ovo dela que você citou confirma o que li de um crítico literário e que eu resumo assim: parte dos leitores de Lispector não entende nada e gosta, outra parte não entende nada e não gosta.
Obrigado, Helga.
Como de hábito, seu comentário desdobra e amplia o nosso texto, com informação e visão social.
Grato. Abraço
Comentário do comentário: estou com você, Helga, em relação a Clarice Lispector. Não entendo, e por isso não gosto. E até escrevi a esse respeito. Não finjo ver a roupa invisível do rei, neste caso, da rainha.. (Ver aqui na Será? meu artigo “Marília e Clarice”).
Paulo Gustavo escreve maravilhosamente bem. Poderia até ter dispensado a citação “empulhativa” da senhora Lispector.
Cumprimentos aos dois, autor e comentarista.
Ah, não Clemente, eu achei que ficou bom passar do ovo bem real da alimentação para o ovo irreal da sonhadora. O fim do artigo fez um bom contraste com a bela ilustração escolhida por João Rego, que chama para a realidade bem concreta.