Emparedado por uma solidão que me parece maior do que jamais imaginei sentir aqui, passei a tarde estático, com preguiça de tomar banho, desanimado para viver essas últimas horas no Recife, antes de regressar a São Paulo. Devagarinho e com razão, todos desistiram de mim. Desesperançado de me deixar ajudar, eu também desisti de todos. Depois de várias noites de lua no horizonte, a aparição dela me transtorna. Quarenta dias depois de ter voltado para o Brasil, continuo como no primeiro: perdido, improdutivo e entediado. Pela primeira vez de que me lembre, comparo minha vida às vidas de quem revi. A minha vai mal, muito mal. Todo mundo com quem eu estive está inserido numa nova vida. Mais de um ano de treinamento, fez com que as pessoas aprendessem a se conhecer mais. Uns se habituaram a ir para a praia ou o campo e o prazer da vida é fazer churrascos em família, brincar com os netos, ver séries, afagar os pais – quando os têm vivos. Não é um universo que me cative mesmo porque as ameaças sanitárias continuam pairando no ar e não me agrada a ideia de ver as pessoas baixando a guarda à medida que ficam altas.
No começo da tarde, pensei em almoçar fora, em comer uma boa moqueca, repetindo na saída o ritual da chegada. O que vi? Na avenida Boa Viagem, havia uma inacreditável carreata de apoio ao capitão. O que podem apoiar? Nem eles sabem. Um homem que é condenado pelo mundo todo, sem uma voz decente que se levante em seu favor, pode suscitar algum tipo de apoio? Pergunto ao porteiro o que é aquilo? “É a turma que tem medo de Lula, doutor”, ele diz. “Mas a chance de Lula voltar a ser presidente é muito incerta. Mesmo que houvesse, o que pode esse pessoal dizer em favor do capitão?” Num caminhão, uma faixa: “Criminalização do comunismo”. Comunismo… Tentei ver na internet quantos parlamentares comunistas temos no Brasil, mas não achei. São tantos assim a ponto de alarmar mesmo os segmentos mais ignorantes da sociedade? Como estou desconectado da realidade brasileira! Mas mesmo olhando para fora, onde é que há comunismo? Onde ele renasceu, sob forma política, desde a queda do Muro de Berlim? Mesmo na China, é sabido, o comunismo é só uma estrutura de hierarquia de poder. E só.
Em Paris, eu tinha meus livros para escrever. Tinha as rotinas regidas pelas estações e os rituais bem estabelecidos – como as pessoas têm os seus aqui. A diferença é que ainda não criei os meus desde que cheguei. Não abri um jornal, li dois ou três livros e fiquei à espera de alguma coisa. Do quê? Francamente, não sei. A verdade é que até as conversas perderam a pegada, a verve, a dinâmica. Salvo uma ou outra surpresa, as cautelas que pesam sobre a comunicação esterilizam o bate-papo à moda brasileira. Um amigo me telefona. Que estranha forma de falar: “Minha mulher vai estar doando vinte cestas básicas no fim de semana…” Vai estar doando! O então campeia. Antes era só em São Paulo, agora é aqui também. Você faz uma pergunta e a pessoa começa a respondê-la dessa forma inusitada: “Então,…” o que eu fiz para merecer isso? Uma amiga me dá uma boa sugestão: “Vamos admitir que você não vai sair do Brasil até outubro e que você tão cedo volta ao Recife, certo? Faça dessa uma temporada médica. Check up, dieta, oculista, dentista, endocrinologista, cardiologista, nutricionista, enfim, tudo a que tem direito.” Pois é.
Sei que a partir da semana que vem as notícias tendem a piorar. Não acredito no sucesso em nenhuma das frentes em que estou empenhado. Tudo indica que vou levar uma surra nos vários embates: fiscal, imobiliário e editorial. O lado bom é que as temperaturas em São Paulo baixaram bem, o que já garante noites melhores. Mas temo que tenha que instalar um chuveiro elétrico. Nunca tive um no meu apartamento, sempre funcionei à base de banho frio. Mas alguma coisa me diz que talvez a idade esteja fazendo de mim mais vulnerável ao choque térmico. Tiro por Recife. Quando vou tomar banho frio aqui, sempre mesclo com água quente, o que antes não fazia. O pior é que em São Paulo não tenho água quente na torneira. Da mesma forma que não tenho gás em casa. O fogão é decorativo e serve como estante de cozinha. Talvez nessa nova vida valesse a pena chamar alguém para fazer essas instalações, mesmo que eu decida mudar de apartamento. De qualquer forma, já tirei das duas cidades que visitei o melhor delas: o barbeiro de São Paulo e o podólogo do Recife, que é imbatível. Isso, para ser sincero, Paris não tinha.
Já no meio da tarde, tive uma alegria. Assisti à cena da abertura dos estábulos em algum lugar no interior da Suécia. Felizes em poder pastar ao ar livre, era comovente ver as vaquinhas saltitar, dar chutes no ar, mugir com vontade, se esfregarem umas nas outras, celebrar a liberdade e vivê-la como não estamos podendo viver: com galhardia, desassombro, em comunhão irrestrita com a natureza. Nessa toada, às vezes vejo pequenos filmes em que dois pescadores abnegados livram uma tartaruga do emaranhado de uma rede de pesca. Que alívio dar vê-la liberta, depois de agonizar durante dias. Quantas não morrem de desespero, na falta de um pescador providencial que gaste 5 minutos para lhes restituir a autonomia de movimentos. O mesmo vale para cavalos afundados em areia movediça, os filhotes de macaco vulneráveis, renas que caíram no gelo frágil e são arrastadas de uma hipotermia certa. Nunca me identifiquei tanto com os bichinhos quanto agora. Agora sei o que pode custar um momento de descuido. Só que no meu caso, não há canivete mágico que me libere dessa arapuca. Não há mão amiga possível. O erro foi meu.
Resta a paciência. Espero que ela nunca me abandone.
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