Love and Hate by  Elin Bogomolnik. Oil on canvas, mix of contemporary, modern, cubism and expressionism, technique of palette knives and brushes.

 

“He was my North, my South, my East and West, My working week and my Sunday rest.”

Stop All The Clocks by W.H. Auden

 

“Na minha época, a gente se casava para sempre. Eu lutei muito para que fosse assim, até para proteger minhas filhas da pecha de ter uma mãe divorciada nos anos 60, num meio conservador como era o nosso. Sei também que seria uma humilhação para Humberto e eu temia as reações que ele, ferido, pudesse ter. Então eu engolia em seco e seguia adiante. Mas não abria mão de comprar as brigas que fossem necessárias. Se ele não era o homem com quem eu tinha sonhado, eu tampouco me sentia na obrigação de ser a mulher ideal. É claro que isso não fazia de nós um casal harmônico. Geminianos, as discussões eram inevitáveis, mas eu não me apequenei. As meninas sofriam e eu também, mas eu dizia que era para elas aprenderem a não dizer sim e amém a homem algum, no dia que se casassem. Quando se quebrou o encanto? Acho que foi ainda na fase de namoro. Mas tem coisas que a gente prefere relevar, fazer de conta que não viu. Depois de casada, o desgaste se acelerou. Eu achava Humberto charmoso e envolvente. Mas a verdade é que, para consumo doméstico, ele era rude e machista. Aquela era só uma fachada. Cada geração nasce com uma programação, o meio impõe limites. Tratei de ver o lado bom. Ele sempre foi um pai correto, tinha um nariz bonito e, quando queria, era engraçado. Quando o deixei no cemitério, depois de 40 anos, voltei para casa com o sentimento de dever cumprido, mais do que de saudade. Não sei se em outras religiões existe o juramento de ir até o fim, custe o que custar. Hoje acho isso uma bobagem. Vendo a morte chegar, sei que poderia ter sido diferente. Fui fiel a um script, muito mais do que a ele. Sonhei muito, mas ele nunca mudou. Mudança depois de velho, já não conta: é pedido de socorro.”

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“Foi uma coisa maluca, eu próprio me desconheci em certos momentos daquela curta aventura. Tudo começou numa festa de casamento. Eu estava nos primeiros bancos, perto do altar. Quando a música anunciou a entrada da noiva, eu me virei para vê-la, cumprindo o protocolo. Então dei de cara com uma mulher que estava bem atrás de mim. Ela tinha um rosto ossudo, os olhos rasgados, era alva, alta, os cabelos caíam em certo desalinho, parecia saída de um livro de Jane Austen. A noiva passava ao nosso lado, mas eu ainda a olhava, como se quisesse filmar a cena. Ora, ela não parecia estar acompanhada. Na saída da missa, que custou a passar, confirmei as impressões. Na recepção, nos aproximamos. Ela era veterinária, ficava pouco na cidade, seus clientes se espalhavam pelo interior. Na época, eu dava umas cafungadas em pó. Quando ela pediu para ir ao banheiro, também fui e voltei calibrado, mas bastante bem. Tudo que me parecia belo, ficou magnífico. Então, para meu choque, ela disse que o marido também era veterinário, que não tinha ido ao casamento porque estava atendendo num haras, na Serra. Respondi assim: “Você não era para ser casada, menina, você estava destinada para mim.” Para minha surpresa, ela me fixou nos olhos e disse: “O pior é que você tem razão. Faz só um mês que me casei. Agora é tarde.” Enlouqueci. Pirei. Do mais feliz dos homens, eu me senti o mais miserável. Conversamos durante 6 horas. Nos meses seguintes, a situação entre nós foi desesperadora. Estivemos à beira de estilhaçar tudo em nome daquela descoberta extemporânea. Anos depois, nos vimos num avião. Perguntei pelo casamento e ela disse que eles iam bem, que tinham crescido, que tinha valido a pena fazer a aposta. Quanto a mim, eu continuava à deriva. Mas sem pó!”

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“Casei quando senti que a hora tinha chegado. Eu já tinha 25 anos, estava formada há 3 e levava uma vida meio boba. As paixões fortes tinham ficado para trás e um dia comecei a namorar com um cara legal, amigo de meu irmão. Foi mais na base do por que não do que do por que sim. A impressão que eu tinha era que, a depender dele, a gente passaria mais uns anos entre fins de semana em Atibaia e dois réveillons no Rio. Um dia eu propus que a gente se casasse. Ele topou. Talvez com mais entusiasmo do que aparentava, mas eu percebia que se eu não tomasse a dianteira, teríamos perdido o timing. Eu não tinha preocupação financeira, mas também não tinha ambições especiais. A felicidade obedecia a uma espécie de inércia, a gente acionava o piloto automático. As crianças nasceram bem e cresciam num ambiente saudável. Ele vivia para nós e a empresa, mas eu tinha uma alma mais complexa. Se eu não satisfizesse meus pendores artísticos, por discretos que fossem, alguma coisa faria falta. Ele sabia disso e engoliu uns sapos. Deu a maior força quando eu comecei a empresariar artistas e excursionar com nomes fortes da MPB. Mais confiante, chegando aos 40, bonita e antenada no que rolava fora da família, comecei a achar meu marido sem sal, previsível. Sabe quando você tem vontade de dar uma martelada na caixa da bússola? Foi o que fiz. Cheguei para ele e disse que estava na hora de darmos um tempo. Fomos à terapia de casal nem tanto para salvar o casamento, mas para suavizar o golpe. Foi duro, mas peguei meu caminho. Eu só sabia o que não queria. Ele sofreu bastante, mas vai bem. É da vida. Para ele, era para termos ido juntos até o fim. Para mim, que abortei o voo, nunca me libertei da sensação de que falhei.”

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“Quando ela me perguntou do meio do nada “Are you going with me?”, eu interpretei a pergunta como uma licença poética, um tributo a uma música bonita que a tinha marcado. Mas, olhando em perspectiva, vejo que aquele momento sinalizou onde estava o nosso norte. “Of course”, eu disse. À medida que os acontecimentos se precipitaram, depois que eu passei a ir a Belo Horizonte toda semana, a ponto de alugar um lugarzinho menos impessoal para nossos momentos, eu vi que havia um movimento em curso que talvez não tivesse só a ver comigo. Se é certo que vivíamos uma paixão, o momento conjugal que ela vivia era especial. Nem ela tinha nada contra o marido nem eu tinha chegado para desestabilizar coisa alguma. Ela tinha um acerto de contas íntimo consigo própria. Às vésperas de ser uma idosa de calendário, ela se recusava a abdicar de um romantismo arrebatador que a vida não vinha dando. É claro que precisávamos deixar o jogo esfriar, ter as primeiras brigas, ouvir as primeiras queixas. Afinal, era uma mulher que, querendo ou não, tinha sido paparicada pelo bom da vida. Os revezes não a tinham vergado, havia ali a chama de uma vontade ardente. Quando, afinal, ela se separou e se abriu uma avenida para a gente, só aí me dei conta de que precisaríamos de um estoque de amor bem grande para compensar o que ela tinha perdido. Ela nos dizia que eu não precisava me preocupar, que a opção teria sido tomada de qualquer jeito. Que eu tinha sido o gatilho, não a pólvora. Tive que me reinventar a partir daquilo, e esquecer que envelhecia. Por acidental que tivesse sido nosso começo, eu tinha entendido logo cedo que aquilo não era um affair como outro qualquer. Alguma coisa dentro de mim queria ver aquela mulher feliz, à altura do que estava quando se saiu com Pat Metheny, lá atrás.

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“Nunca fui uma caçadora de machos-alfa. Nunca tive essa adoração pelo mix de homens provedores, líderes e brilhantes. Não que achasse que jamais beberia dessa água, mas certamente não a procurei. Por ironia, meu primeiro marido se encaixava no figurino do cara hard. Tivemos um casamento legal, nosso filho foi uma alegria, mas acho que ele queria outra coisa. Quando percebi isso, aproveitei a deixa: aderi ao projeto de sermos amigos para sempre e de tocarmos uma separação amigável. Se tive um mês de recato, foi muito. Logo abri as comportas e dei asas à imaginação – que nunca me faltou. Nem passava pela minha cabeça idealizar como seria meu próximo marido, se é que eu iria ter um de novo. Mas aí ele pintou e me deu o que pensar. Olhei bem e disse para mim mesma que cuidar do outro, era cuidar de mim. Que eu não seria uma referência de beleza pelo resto da vida. Então meu critério foi a escolha pelo desamparo. Entre os caras que podiam me interessar, eu escolhi o mais amigável – um bonachão que não transbordava. Um cara ficha limpa, se eu posso resumir assim. Mas quem diz que um copo cheio sacia todas as sedes? No fundo, era como se, ao lado dele, eu fosse branquear a minha própria ficha, que às vezes eu achava meio enegrecida. Sabe, o segundo casamento tem ingredientes engraçados. No começo, a gente vai pela sombra, fiel a um figurino de quem quer dar exemplo aos filhos, aos amigos e, se duvidar, até aos pais – que tinham perdido a fé no nosso taco. Mas a sensação de que dali eu não ia mais sair começou a pesar, e o casamento foi se desfazendo como cimento vencido. Até que desmoronou quando decidi nadar em águas revoltas. Você olha um cara novo e diz que não pode morrer curiosa. Que quer ir fundo. Então, eu fui tragada – engolida mesmo. Sentia a paixão nas terminações do corpo. Até hoje eu pergunto a ele: até ? quando você virá comigo? Como na música… Ele tem um verbo fácil, mas apenas sorri e prefere me beijar.”