Mozart e Da Ponte, uma parceria perfeita na ópera.

 

O compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) é muitas vezes apresentado, antes de tudo, como um compositor de opera buffa, termo usado para descrever a versão italiana da ópera cômica. Mas é sabido, a partir de referências em sua correspondência particular, que a ópera séria e a ópera alemã ou Singspiel eram pelo menos tão importantes quanto, senão mais ainda. Mozart era essencialmente um profissional, e quando o teatro da corte vienense queria uma opera buffa, ele estava pronto para escrevê-la, desde que pudesse achar um libretista que lhe fornecesse textos adequados. Nesse sentido, o poeta italiano Lorenzo da Ponte (1749-1838) tinha o cuidado de adequar seus libretos aos compositores para os quais os preparava. Seus três textos para Mozart – As Bodas de Fígaro (1786), Don Giovanni (1787) e Così Fan Tutte (1790) – exibem uma excepcional complexidade de caráter e motivação. Seus enredos trazem muitos elementos tradicionais e convencionais, mas tratados de maneira que lhes conferem uma nova dimensão de seriedade.

Para o musicólogo inglês Stanley Sadie (1930-2005), renomado especialista no compositor, o mais diretamente cômico é provavelmente As Bodas de Fígaro. Muitos elementos políticos na peça original do teatrólogo francês Pierre-Augustin de Beaumarchais (1732-1799) – criador do personagem Fígaro em sua trilogia constituída pelas comédias Le barbier de Séville (1775), Le Mariage de Figaro (1784), e pelo drama La Mère Coupable (1790) – incluindo a maior parte das expressões diretas de ressentimento social, foram devidamente podados por Da Ponte; mas as tensões sociais que causaram polêmicas permaneceram, para serem expostas, por exemplo, na ária “Se vuol ballare” de Fígaro no ato 1 (vídeo abaixo). A natureza das árias individuais também reflete a posição social dos vários personagens.

Alguns ensembles – conjuntos de cantores solistas – contêm tipos mais complexos de expressão, como o humor irônico de “Via resti servita” (vídeo abaixo). Em geral, de toda forma, os ensembles, seguindo a tradição da opera buffa, levam adiante a ação. Isso se aplica particularmente aos finales. A ópera antecipa claramente a nova estrutura em dois atos que seria usada posteriormente em Don Giovanni e Così Fan Tutte. O plano tradicional de três atos é abandonado. Cada finale prolongado é fortalecido por sua unidade tonal, de forma que a direcionalidade os reúne. É a força sinfônica da música, e seu alto grau de elaboração orquestral, que dá vida aos personagens, profundidade às situações e seriedade às resoluções, e coloca a ópera à parte da generalidade das opere buffe italianas da época, por mais próximo que possa se assemelhar às de compositores como Giuseppe Sarti (1729-1782), Pasquale Anfossi (1727-1797), Giovanni Paisiello (1740-1816), Domenico Cimarosa (1749-1801) ou Vicente Martín y Soler (1754-1806) em seu estilo e em seu material.

Pesquisas recentes sobre Fígaro lançaram novas e importantes luzes sobre o método de composição de Mozart. Análises do papel e da tinta na parte disponível do autógrafo mostram que ele não compôs a ópera do começo ao fim em seis semanas, conforme Da Ponte lhe mandava o libreto, mas de acordo com o caráter das partes: primeiro as não-dramáticas, depois as cômico-dramáticas, em terceiro lugar as cenas de ação e por último as árias líricas. Embora Don Giovanni, como Fígaro, esteja baseado sobre tensões de classe e sexo, seu enredo, que remonta à época de Tirso de Molina (1571-1641), é material menos óbvio para uma opera buffa; em parte devido aos elementos sérios e sobrenaturais envolvidos, e em parte porque a história era simplesmente curta demais. Da Ponte recorreu ao que era de fato um libreto de um ato de Giovanni Bertati (1735-1815), musicado por Giuseppe Gazzaniga (1743-1818) para Veneza, e o preencheu de episódios extras. Dessa maneira, o texto carece da inteireza do enredo de Fígaro, com sua cercada rede de relacionamentos funcionais. Mas a força e o caráter “demoníaco” da música têm exercido uma fascinação especial para as audiências, dando origem a uma vasta literatura crítica, interpretativa ou mesmo puramente fanática por, entre outros, Søren Kierkegaard (1813-1855), Eduard Mörike (1804-1875) e Charles Baudelaire (1821-1867).

Uma diferença em abordagem entre Fígaro e Don Giovanni fica evidente na cena longa e tonalmente integrada que abre a ópera. Muito do material básico é assim exposto, no que é virtualmente um curto período de tempo musical, sem rupturas. O material buffo mais convencional que se segue assume a forma de um recitativo simples alternante e de números líricos – entre estes últimos está a chamada ária do catálogo do lacaio Leporello, num padrão rápido-lento incomum, como mostra o vídeo abaixo. O fio principal do enredo se resume na cena do cemitério e na famosa ceia da cena que conduz o protagonista ao inferno, um finale prolongado.

Così Fan Tutte, composta apenas dois anos depois de Don Giovanni, e também tendo fontes em Tirso de Molina, é amplamente reconhecida como sendo a mais cuidadosa e simetricamente construída, e a mais consistente em estilo, das três óperas que Da Ponte escreveu para Mozart. Così tem sido também a mais severamente criticada por ditas “falhas morais”. O tema da comédia, a volubilidade feminina, foi considerada chocante mesmo logo depois da composição da ópera, o que se agravou ainda mais pela convenção (presente também em Fígaro e Don Giovanni) de que a ação não deveria transcorrer em mais de 24 horas. A ópera, contudo, é passível de interpretações mais positivas, por exemplo, como um comentário sobre a força e o caráter incontrolável dos sentimentos amorosos.

O plano de Così Fan Tutte e a constituição do elenco tiveram um impressionante tratamento simétrico, com três homens (um par de oficiais e seu amigo) e três mulheres (duas irmãs e sua criada), cada um tendo uma ária em cada ato. Embora no ato 1 as emoções expressas sejam consideradas adequadas às situações, no ato 2 seu tom se torna mais pessoal. As mensagens das árias não são tão previsíveis; e as duas irmãs e os dois oficiais se diferenciam um do outro de uma maneira que se confere coerência aos pares originais. Em particular o dilema da irmã mais austera, Fiordiligi, é fortemente transmitido na música heroica de sua ária “Per pietà, ben mio, perdona” (vídeo abaixo).

A música do sexteto final de Don Giovanni faz parte de numa tradição que hoje é familiar, sobretudo a partir dos finales de Gioacchino Rossini (1792-1868) – como o ato 1 de O Barbeiro de Sevilha – e de Ludwig van Beethoven (1770-1827) – no “Mir ist so wunderbar” de Fidélio. Mozart deve ter conhecido alguns modelos nas óperas Una Cosa Rara, de Martín y Soler, e Gli Equivoci, de Stephen Storace (1762-1796). É possível encontrar precedentes para diversas características de óperas de Mozart sobre libretos de Da Ponte, inclusive, em diversos casos, ecos da música de Sarti, Gazzaniga, Paisiello e outros. Às vezes, como na música dos camponeses em Don Giovanni, isso era tradição comum. Mas a sutileza da caracterização, a riqueza do desenvolvimento orquestral, o controle tonal e sinfônico de longas extensões de música, a vitalidade do recitativo (tanto o simples como o obbligato) e a gama de emoções sérias se combinam para situar estas três obras-primas da parceria entre Mozart e Da Ponte num patamar diferente das outras opere buffe não apenas de sua época, como também de toda a história da música ocidental.