Proust antecipou uma inflexão decisiva à moderna crítica literária. Pretendeu, como se sabe, que a crítica se voltasse para a obra considerada em si mesma. Daí ter se voltado contra o grande crítico francês Saint-Beuve (1804–1869), cujos equívocos de julgamento decorreram de sua tendência de enquadrar os autores enquanto puras personalidades da vida social. O pouco caso a Baudelaire é um exemplo emblemático. Em poucas palavras: seguiu o método biográfico, já praticado por Villemain (1790–1870), que explica a obra em função da vida de seus autores.

Mas a chamada “vida literária”, na qual se movem as pessoas reais dos escritores, nunca perdeu a sua graça e o seu interesse nem deixou de ter, por assim dizer, cronistas e fiéis leitores. O motivo nos parece simples: se a crítica mais formal e acadêmica de fato dá conta do artifício literário em si mesmo, a vida literária tem razões muito humanas para continuar despertando a atenção, dentre as quais a sociabilidade entre escritores; a curiosidade, o sentido histórico-social, o registro dos costumes, o prazer tão natural da bisbilhotice; enfim, é a própria vida que existiu e se moveu em meio às obras, quer como circunstância existencial, quer como registro biográfico. Evidentemente, nem sempre há correspondências entusiasmantes entre autores e obras, pelo contrário: há frequentes decepções, como Proust demonstrou em seu inexcedível romance “Em busca do tempo perdido”. Decerto, mal adivinhamos ou reconhecemos ao nosso lado o autor talentoso ou genial. Afinal de contas, na vida real, o místico do poema sublime revela-se um prosaico fornicador; o amável lírico de certos textos é um insuportável chato; o que defende a paz mundial não passa de um contumaz irascível, etc., etc. Daí tantos desencontros e conflitos… 

É da vida literária, como indica seu título, que trata o “Diário: memórias da vida literária”, de Jules e Edmond Goncourt, os famosos Irmãos Goncourt, recém-lançado no Brasil, com introdução, tradução, seleção e notas de Jorge Bastos. São trechos selecionados que cobrem praticamente as últimas quatro décadas da vida literária francesa do século XIX. Hoje, na França, Goncourt é, sobretudo, sinônimo do mais prestigioso prêmio literário nacional.

Mas ai de quem pensa, como eu próprio cheguei a pensar, que vai encontrar na obra uma leitura maçante e sem graça. Romancistas e dramaturgos, os Goncourt também são exímios criadores de retratos e excelentes contadores de historietas cheias de humor. Historietas e casos, em sua maioria, evocadas do convívio com escritores e artistas. Há mesmo alguns breves relatos picantes da vida íntima, não apenas deles, autores, como de amigos e conhecidos. É, por assim dizer, o lado “buraco da fechadura” do famoso “Diário”, o que dá visibilidade ao que se oculta dos bons modos da vida em sociedade. 

Numa época de banquetes literários, salões e homenagens festivas, os irmãos não fogem à regra e formam em Paris, no restaurante Magny, um seleto grupo de amigos para encontros frequentes. Entre tais amigos, o acima citado Saint-Beuve, Émile Zola, Flaubert, Taine, Turguêniev, Paul Baudry, Renan, Théophile Gautier, Paul de Saint-Victor, Alphonse Daudet. Mas, como “nenhum amor dispensa uma gota de ácido”, como disse Carlos Drummond de Andrade, instala-se no ar a ambivalência dos afetos, quase sempre no limite patético e triste de surgirem… desafetos. O ácido dos Goncourt tem uma química severa: Flaubert, por exemplo, um dos mais citados amigos, sempre se queima numa discreta, mas rigorosa, inveja (“Flaubert é cheio de paradoxos, paradoxos que exalam provincianismo, como a sua vaidade. Tudo nele é áspero, pesado, forçado, sem graça.”). Enfim, os gênios, digamos assim, são de fato geniosos e, portanto, suscetíveis. Temem ser plagiados, ficam enciumados com o sucesso alheio, destroem, entre um brinde e outro, com duas ou três metáforas vorazes, a reputação alheia. A munição que disparam contra alvos bem nítidos nos lembra de outro famoso convivente ilustre dos Goncourt, o escritor Guy de Maupassant, quando escreveu que “Só um elo une os escritores: o do ciúme”.

Mas nem tudo é ácido, nem tudo é polêmico, nem tudo é ironia ou simplesmente divertido no “Diario”. Aqui e ali, o texto tem momentos de uma reflexão existencial atenta e aguda. Cito alguns exemplos: “Quando jovens, ficamos alegres mesmo em lugares tristes; velhos, ficamos tristes mesmo em lugares alegres”; “[…] Deus, um dos assuntos que mais fazem pessoas inteligentes dizerem besteiras”; “O que mais entristece os nossos tempos, e o homem dos nossos tempos, é que ele em tudo procura a verdade: e a encontra”; “Com muita habilidade, a vida se arranja para que ninguém seja feliz”; e em outro momento de amargura: “Imbecis ou malucos: eis os dois tipos de admiradores que um escritor ainda em vida consegue”; “Hoje ainda existem versejadores, mas não mais poetas, porque toda a invenção, toda a criação, toda a imaginação do tempo presente está na prosa”; e esta verdade que vem da moderna vida prática: “Para muitas pessoas, o teatro é tudo que elas conhecem de literatura, e muita gente importante é tão ocupada que nunca abre um livro que não seja ligado à sua profissão. Resumindo, o teatro é a única forma de literatura para muitos cientistas, advogados e médicos”. E esta reflexão, que teria agradado a Oscar Niemeyer: “Não há linha reta na natureza. É uma invenção do homem, talvez a única estritamente humana. A arquitetura grega, cujo princípio é a linha reta, é totalmente não natural”.

Encerrando esta resenha, aviso aos porventura interessados no livro que a edição é tão bem cuidada quanto limitada, pois a tiragem é de apenas mil exemplares numerados. Suas bem-vindas notas de pé de página esclarecem, como ocorre em obras assim, sobre o contexto histórico-cultural. Também é valioso, ao fim do volume, um índice onomástico que nos informa sobre as personalidades artísticas, literárias e políticas mais citadas. Eis um banquete para leitores os mais diversos, o banquete dos Goncourt.