Frederico Toscano

A soprano finlandesa Karita Mattila interpreta Salomé diante da cabeça de João Batista, em produção do Metropolitan Opera de Nova York.

Mesmo sendo considerado o último compositor romântico alemão, as influências operísticas de Richard Georg Strauss (1864-1949) não podem ser reduzidas a um único estilo. Compôs 15 óperas, variando da chocante e dissonante Salomé, provavelmente a primeira ópera moderna, a Der Rosenkavalier, uma homenagem ao gênio austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), e cheia de valsas.

Strauss conquistou um lugar ímpar na história da ópera. Em 1905, Salomé, de intensa modernidade, rompeu todas as regras da ópera romântica. Ao compor a derradeira Capriccio, em 1942, foi atraído à música de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) e Christoph Willibald Gluck (1714-1787), antigos mestres da ópera. Não faltam explicações sobre o motivo de Strauss ter abandonado a vanguarda em troca de abordagens menos inovadoras e até nostálgicas da ópera. Curiosamente, porém, não importa a classificação de sua música, Strauss é hoje considerado talvez o mais importante compositor de óperas do séc. XX, concorrendo apenas, talvez, com o barão inglês Benjamin Britten (1913-1976).

Como tantos inovadores, Strauss foi duramente criticado, mas nunca duvidou do próprio talento. Alguns de seus sucessos podem ser atribuídos à extraordinária sinergia de sua colaboração com o poeta e dramaturgo austríaco Hugo von Hofmannsthal (1874-1929). O jovem libretista apresentava uma linguagem densa, simbólica e reflexiva. Dava preferência a enredos de dramaticidade básica e profundidade filosófica, embora Strauss pedisse materiais mais leves.

Como seu adorado Mozart, Strauss foi uma criança prodígio. Seu pai tocava trompa na Orquestra da Corte da Baviera, em Munique, onde Strauss criou sua primeira composição aos quatro anos. Aos cinco anos, compunha canções. Logo viriam obras orquestrais e peças de câmara, e sua primeira sinfonia foi executada quando ele tinha 16 anos. Strauss vivia para a música; compôs seu Concerto para violino durante uma aula de matemática que o entediava, e ao deixar a escola tinha quase 150 obras compostas. Aos 20 anos, regeu uma orquestra na estreia de sua primeira grande encomenda, dando início a uma carreira meteórica que o levaria a orquestras importantes em Munique, Berlim e Viena.

Também regeu sua primeira ópera, a wagneriana Guntram, em 1894. Embora seu pai não gostasse do conterrâneo Richard Wagner (1813-1883), Strauss viria a sofrer grande influência dele, assim como de Mozart. E apesar de Guntram ter sido fracasso de estreia, representou um êxito na vida particular de Strauss: a soprano principal, Pauline de Ahna (1863-1950), tornou-se sua dedicada esposa pelo resto da vida.

Uma grande virada em sua carreira sobreviria em 1905, com o choque de Salomé. Baseada na peça do escritor, poeta e dramaturgo irlandês Oscar Wilde (1854-1900), seria em diferentes momentos proibida e cancelada. Mas, com sua trama audaciosa, novas sonoridades sinfônicas e impressionante escrita vocal, eletrizaria o público onde quer que fosse montada. Strauss havia assistido à peça de Wilde em Berlim em 1903 e já tinha lido o seu texto um pouco antes. Talvez já tivesse rascunhado alguns temas para a ópera, mas foi a encenação que incendiou sua imaginação. A linguagem da peça, entretanto, não tinha nada a ver com a fala de um libreto de ópera no estilo tradicional. Nem sua abordagem franca de obsessão sexual, a necrofilia e a forma feminina desnuda teriam passado pelos censores de uma época anterior.

Ao final da estreia de Salomé, os artistas voltaram 38 vezes para agradecer os aplausos, mas a crítica não foi unânime. Hoje é considerada uma obra-prima, talvez a primeira ópera moderna. Sua trama é uma rede de obsessões: de Herodes com Salomé, de Salomé com João Batista e de João Batista com Deus. Ora ilustrando, ora esmiuçando o libreto, a orquestra produz efeitos impressionantes, sobretudo nas cordas, para as quais a escrita de Strauss exigia novas técnicas de arco e dedilhado. Crueldade, perversão e fixação permeiam a obra, sob o luar que banha o terraço palaciano. Porém, por mais perturbadores que sejam os temas, a música ao mesmo tempo aveludada e de alta tensão prende a plateia.

A ópera é relativamente curta e tem início no terraço contíguo ao salão de banquete do palácio de Herodes em Israel, cerca de 30 d.C. Herodes mandou matar o irmão por estar apaixonado pela mulher dele, Herodíades. Mas agora deseja a jovem filha dela. O popular profeta Jokanaan (João Batista) prevê a ruína da corte de Herodes, que manda prendê-lo, proibindo Narraboth, o capitão da guarda, de deixá-lo sair. No começo da ópera, Herodes comemora seu aniversário no palácio. No terraço banhado pelo luar, Narraboth encanta-se com a beleza de Salomé. Ela se esquiva do olhar lascivo de Herodes e ouve uma voz que a deixa fascinada: é o prisioneiro Jokanaan, invocando o Messias e amaldiçoando Herodíades. Salomé convence Narraboth a desafiar as ordens e trazer o prisioneiro. Surge Jokanaan. Ela primeiro sente repulsa, mas logo, atração:

Vendo-a desejar o profeta, Narraboth, desesperado, se apunhala e morre. O profeta rechaça Salomé, instando-a a buscar o perdão do Senhor. Mas ela só pensa em sua boca e implora um beijo. Jokanaan é levado de volta a sua cela na cisterna, amaldiçoando Salomé. Ela por sua vez jura que haverá de beijá-lo. Chegando ao terraço, Herodes tenta atrair Salomé. Herodíades pede a Herodes que entregue o prisioneiro aos judeus, mas ele se recusa a por em risco o “santo homem”. Um grupo de judeus afirma que Jokanaan não é profeta, mas os nazarenos discordam, lembrando os milagres do Messias. Herodes teme que esse homem possa ressuscitar os mortos e pergunta onde ele está. Um nazareno dá uma resposta preocupante: ele está em toda parte. Com renovada força, a voz das profundezas aterroriza Herodíades com advertências. Herodes implora a Salomé que dance para ele, prometendo, em troca, o que ela desejar. Ignorando as objeções da mãe, Salomé executa a Dança dos Sete Véus:

Encantado, Herodes pergunta o que ela deseja. Ela quer a cabeça de Jokanaan numa bandeja de prata. Herodes oferece-lhe qualquer outra coisa de suas posses. Mas Salomé insiste. “Que ela receba o que pediu”, consente finalmente Herodes. Salomé aguarda os gritos de Jokanaan e não suporta que não haja sofrimento. A cabeça é trazida. Herodes recua, aterrorizado; Herodíades exulta; e os nazarenos se ajoelham para rezar. Triunfante, Salomé beija a boca de Jokanaan:

À partida de Herodes, uma nuvem negra encobre a Lua. Na escuridão, Salomé sente o gosto amargo da boca de Jokanaan, “talvez o gosto do amor”. Súbito, com Salomé iluminada por um facho de luz, Herodes manda matá-la. Os soldados investem e a esmagam com seus escudos, quando a cortina cai.

A obra deveria estrear em Viena sob a regência de Gustav Mahler (1860-1911), mas o arcebispo católico a considerou imoral. E não estava só. Em Londres, a obra seria proibida até 1910. Em Nova York, em 1907 a temporada de Salomé foi suspensa após a primeira récita no Metropolitan Opera por pressão de seu mecenas, o banqueiro norte-americano John Pierpont Morgan (1837-1913).

Como diz o Evangelho segundo São Mateus (14,6), “ora, por ocasião do aniversário de Herodes, a filha de Herodíades dançou ali e agradou a Herodes”. A primeira Salomé, a soprano alemã Marie Wittich (1868-1931), porém, recusou-se a executar a Dança dos Sete Véus. “Não o farei. Sou uma mulher decente”, diria ela, segundo Strauss. Uma bailarina serviu de improvável dublê da robusta soprano. Desde então, muitas Salomés cederam vez a dançarinas nessa cena.

Um dos elementos chocantes em Salomé não é tanto que sua insanidade e perversão sejam apresentadas para o prazer de quem as vê, mas que essas circunstâncias sejam acomodadas em frases floridas cheias de metáforas e imagens altamente poéticas. Outro, é que a protagonista feminina trata seu antagonista masculino como um objeto, falando de forma friamente lírica sobre o seu corpo, seu cabelo, sua boca. Até hoje, na história da ópera, esse lirismo tem sido ouvido com bastante frequência, mas a prerrogativa da dominância tem sido confinada aos homens, e o status de objeto confinado às mulheres. Basicamente, o libreto libertou a fantasia operística de Strauss não por ser ousado em si mesmo, mas porque Salomé, como uma alma em tormento dominada pela paixão, sugeria um papel extremo para a música de ópera.

Salomé com frequência é chamada de “expressionista”, termo primordialmente associado às artes visuais na Alemanha na época (Egon Schiele, Oskar Kokoschka e Wassily Kandinsky são aqui os principais suspeitos), mas também encontrado na literatura (Georg Trakl, Franz Kafka), no cinema (Fritz Lang) e outras artes. Foi um movimento no qual os fenômenos, tanto humanos quanto não humanos, são caracteristicamente distorcidos para elevar a temperatura emocional de sua representação, no encalço de uma intensa subjetividade que favorece sentimentos negativos. Um dos motivos pelos quais a música de Strauss é rotulada como expressionista é que o fato de ela se prolongar em percepções e estados mentais extremos tem um efeito impactante nas plateias.

Mesmo hoje, boas apresentações de Salomé tendem a ser recebidas com momentos de espantado silêncio. Há uma sensação de que, tendo sido arrastados para esse demente mundo interior por intermédio da música, precisamos de uma pausa antes de voltar ao mundo exterior.

Epílogo

Concluindo esta série de artigos, esperamos ter contribuído para despertar a curiosidade dos nobres leitores a explorar o universo fascinante da ópera, em seus 400 anos de existência – e em incansável evolução. Na atual era global da ópera, que começou com a queda do Muro de Berlim em 1989 e o advento da Internet na década de 90, observa-se, de novo, que a experimentação vem com a popularização.

Pela primeira vez em quase um século, talentos do antigo bloco soviético e do Ocidente passaram a conviver nos teatros de ópera, de Moscou a São Francisco. Em 1990, Plácido Domingo, Luciano Pavarotti e José Carreras se apresentaram como Os Três Tenores, empolgando milhões de ouvintes numa transmissão televisiva para o mundo inteiro. Por sua vez, a Internet despontou como novo foro para entusiastas da ópera.

Essa era global também deu lugar a uma nova geração de criadores. O futuro da ópera está nas mãos de compositores como o húngaro Peter Eötvös, o belga Philippe Boesmans, a finlandesa Kaija Saariaho e o sino-americano Tan Dun. A primeira ópera de Tan, Marco Polo, homenageou um fundador da cultura global: como a própria ópera, o mercador e explorador italiano Marco Polo (1254-1324) partiu de Veneza e foi além do que se poderia imaginar.

Inúmeras maravilhas do repertório operístico, além das selecionadas nesta série, merecem ser apreciadas e são apresentadas nas temporadas dos grandes teatros pelo mundo afora. É importante lembrar que muitas obras de excelente qualidade permanecem adormecidas desde a sua estreia e aguardam uma oportunidade para voltar aos palcos. A cada resgate desses tesouros, que acontecem com maior frequência ultimamente, vemos uma celebração dos amantes da ópera. Sejam fictícias ou factuais, cômicas ou trágicas, as óperas inspiram a vida e é sempre uma garantia de fortes emoções.