Rosh Hashaná – autor desconhecido

 

As datas do calendário judaico mexem comigo. Especialmente Pessach, a mais representativa delas. Mas a de hoje, o Ano Novo, também me balança. Numa escala bem menor, fica Chanucá, que acontece poucos dias antes do Natal. Quanto a Purim, é quase irrelevante, a menos que eu esteja em Nova York, lá pelas bandas do Brooklyn, onde se pode deparar com cenas engraçadas em Williamsburg e Crown Heights – como vi acontecer duas vezes. Seja como for, um dia como este 6 de setembro de 2021 é para a gente passar como passa o 24 de dezembro. Em paz, numa espécie de resguardo para o depois.

Mas não foi o meu caso. Sendo dia 7 feriado, e como forma de evitar as filas que caracterizam a volta à normalidade, fui me vacinar. Não tive qualquer dificuldade de receber a terceira dose da vacina Pfizer. Terceira para mim, bem entendido. Para o sistema brasileiro, foi a primeira. Depois, fui ao velório de João Sayad, por si só uma provação. Na Funeral Home, da alameda São Carlos do Pinhal, lá estava João num caixão de madeira clara, barba rala, um terço entrelaçando as mãos. Entre comes e bebes, as pessoas estavam animadas, refasteladas nas poltronas. Morrer é mesmo mau negócio. Fernando Haddad, muito digno, foi o único que quis saber de tudo junto à família. Faz diferença ter conhecido o pai!

Saindo de lá, caminhei pela avenida Paulista, que se preparava para um Halloween antecipado em que se misturavam fisiculturistas de olhar esgazeado – muitos enrolados em bandeiras do Brasil, de São Paulo e, estranhamente, de Israel. São três pavilhões potentes, cheios de apelo emocional, mas que, combinados naquela gente, davam o tom da preparação de um baile de horrores. Almocei num japonês, li os jornais e apesar da reação local à vacina no braço direito, tive um anoitecer bonito. Ouvi as músicas do Ano Novo judaico pelo computador, diretamente de um auditório comunitário perto da Paulista. Me servi de um cálice de vinho e entrei no clima à minha maneira.

Para fazer a cozinha funcionar, talvez pela primeira vez em seis anos,  retirei uns papéis do forno de microondas (achei um cartão de crédito que tinha dado por perdido e que tinha cancelado em abril), e fiz um teste com um copo de água da torneira para ver se ele estava funcionando. Sim! Então peguei na geladeira a travessa com o caldo e as bolinhas de matzo. Preservei metade do joch para a segunda rodada com os kneidele e então, sem televisão nem clima para a leitura, pensei em como gostaria de estar com você. Sim, com você mesma. Não por saudades dos que já se foram, não por um marco relevante. Mas porque simplesmente queria estar com você.

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Vê-la à distância, em sua beleza única, me doeu. Me fez pensar numa ocasião que data de uns 20 anos em que calhou de eu estar sozinho em Rosh Hashaná, bem no coração de Higienópolis, onde morava. De minha janela, via as janelas iluminadas e a silhueta de pessoas que se abraçavam. Via a brasa dos cigarros, as brincadeiras com as crianças e o murmúrio das músicas que, vindas de tantas casas, pareciam se sobrepor, enlevando o bairro – como num quadro de Chagall. Era como se de todos os apartamentos da região emanasse um acorde e, juntos, eles colocassem as ruas em transe. E minha solidão cósmica na data era pungente. Mesmo com bares e restaurantes abertos.

Naquela época, eu já tinha feito algum resgate do que restara do judaísmo no Leste da Europa, mas ele não tinha satisfeito minha curiosidade – o que só aconteceria em ritmo acelerado de 2005 em diante. O fato é que de todas as janelas, vinha vida. Com várias gerações unidas, aquelas colméias me passavam uma ideia de afeto, de lágrimas, de piadas repetidas, de aroma de caldo, de boa comida e, como é quase de regra, de péssima bebida. Mas o que importava? Que importância tinha que alguém tivesse comprado um vinho sacramental doce e barato para regar finas iguarias se, no fundo, todo mundo queria mesmo era tomar seu copinho de guaraná? Judeus não são grandes bebedores.

Naquele ano, eu estava triste. E esperava que acontecesse o que fosse, eu não voltaria a passar os feriados judaicos ao abandono – a menos que estivesse em Mianmar, onde eles não contassem. Ou em Dar es Salam. E então, agora em 2021, aconteceu de novo. Sozinho, hoje eu queria estar com você. Desfrutar de seu sorriso, do apuro com que você observa os detalhes, ao lado de sua família. Sei que não é a ocasião mais propícia, que o futuro nos reserva momentos melhores, mas, mesmo assim, sinto sua falta. Eu sei que a Covid corta todos os baratos, que qualquer grupo que se preze tem que manter entre si alguma distância e que não é o momento de afagos ou intimidades públicas.

Não é que a sensação de hoje tenha sido tão devastadora quanto a daquele ano. Sendo véspera de feriado, a cidade está mais vazia. Sendo véspera de una giornata particolare – na acepção do termo, à la Ettore Scola -, mais ainda. E depois, não moro mais na Zona Oeste. Mas você mora! Pode não ser ali pelos entroncamentos da São Vicente de Paula ou da Albuquerque Lins – perto de onde eu vivia -, mas o pôr do sol de sua rua nessa época é tão belo quanto. E o fato a deplorar é que estamos distantes, quando eu queria que estivéssemos juntos. Que despachássemos todo mundo da porta e que fôssemos conversar para depois dormir… juntos.

Sei que isso não está ao alcance de qualquer estalo de dedos, e não se materializa à mera manifestação da vontade. Mas essa é a verdade. Eu espero que no próximo ano, tudo esteja normalizado. Que até lá, tenhamos comido uma libra de sal juntos. Se eu estiver por aqui, e se você quiser, talvez a gente possa olhar para este 6 de setembro de 2021 sem maiores saudades, além das que são provocadas por nossa condição de hoje. Que olharemos para trás como quem viveu um rito de passagem e deu um passo de uma dimensão para outra. Não há nada fácil pela frente, mas tudo é possível. Além do mais, tudo o que rola esse ano transcende o momento e a vida. Assim é o amor – a dar fé no que dizem.