Sigmund Freud.

 

Se há um nome que dispensa apresentações, não obstante os naturais equívocos de entendimento de sua personagem pública, esse nome é o de Sigmund Freud. Vivemos, como já apontou o crítico Harold Bloom, em plena “Era Freudiana”. E, ao contrário do que se divulga levianamente, a psicanálise mantém, pelo menos em seus pilares fundamentais, um vigor que lhe insufla uma honrosa sobrevivência. Até em face dos avanços da neurociência, a psicanálise tem mostrado o acerto de várias considerações freudianas, como o provam, dentre outros, livros do porte de “O oráculo da noite”, de Sidarta Ribeiro, e de “Em busca da memória”, do Nobel Eric Kandel.

Com atraso de onze anos em relação à edição original, sai no Brasil o livro “Cartas aos filhos”, de Sigmund Freud, organizado por Michael Schröter, tradutor de Anna Freud e sociólogo, com tradução de Georg Otte e Blima Otte e revisão técnica da psicanalista Betty Bernardo Fuks. No original alemão, o título é caloroso e poético: “E no meio tempo ficamos bem unidos”. Afinal, a união faz as cartas, e estas vencem inevitáveis distâncias.

Mas ficará desapontado quem for, nessas “Cartas aos filhos”, em busca de psicanálise ou de qualquer revelação pessoal de Freud a esse respeito. Isso, bem o sabem os especialistas, encontra-se em outro gênero da vasta correspondência do autor. Em “Cartas aos filhos”, o Freud que encontramos é, de fato. o pai. Um pai participante da vida dos filhos já crescidos e maduros, e um pai, por assim dizer, a caminho da velhice.

Se é lugar-comum ver em Freud uma espécie de patriarca judeu, não é difícil encontrar nessa correspondência familiar essa marca essencial. Freud participa da vida familiar sem abrir mão de seu papel nuclear, abrangente e superior. Adverte, aconselha, ajuda, preocupa-se, felicita. Sabe que nesse papel não encontra um divã para descanso. A responsabilidade, supomos, é tanto maior quanto Freud está consciente de sua crescente fama e do seu firmado prestígio. A certa altura, discretamente desabafa: “Eu não sabia que o nosso trabalho aumentava com a idade. A idade do descanso parece ser uma fábula como aquela da juventude feliz”. Noutro trecho, essa discrição é trocada por uma explícita reclamação, tendo em vista o alto apreço que dedica à vida familiar: “E enquanto eu, um homem de reputação mundial, tiver que enviar o parecer sobre um caso em Sidney e esclarecer outro de uma dama em Porto Rico sobre as lembranças da infância dela etc., não terei tempo para a minha família”. 

Por outro lado, é de se imaginar quanto a Freud interessava um equilíbrio familiar. Não só isso, mas também a consciência de que nunca é fácil se ser filho de pai famoso, pois sempre há, por mais que tal fato seja mitigado, uma espécie de opressão de mão dupla capaz de produzir terríveis sentimentos de culpa. À parte isso, o que contava para Freud, além do evidente afeto, é a vida prática, cotidiana, e nesta, como nos chama a atenção o organizador, a questão pecuniária, pois o pai da psicanálise “não se furtava de apoiar financeiramente seus filhos, mesmo quando adultos e autônomos”. Outro ponto destacado por Schröter é o cuidado paternal com a escolha dos maridos por suas filhas: “Enquanto deixara aos filhos a procura pela esposa adequada; no caso das filhas, insistia bastante na seleção de parceiros que tivessem o seu consentimento”. Uma seletividade burguesa de evidente viés machista e autoritário.

Finalmente, devemos dizer que o pai e o psicanalista rezam pela mesma cartilha moral, ou seja, nada de ilusões, pois estas são sabidamente nefastas e logo cobram seu preço (“Sei que pagamos caro pelas ilusões”). Como pai, Freud guia-se, como de resto a maioria dos pais, por um estrito e vital pragmatismo. No mais, ao se dirigir a seus filhos Mathilde, Jean Martin, Oliver, Ernst e Sophie (a correspondência com a caçula, Anna Freud, que se tornou analista, já havia sido publicada anteriormente), Freud, embora com seus laivos patriarcais, sempre os respeita em suas próprias decisões. Nada surpreendente para quem sabia escutar e suportar estoicamente a realidade.

A edição de “Carta aos filhos”, além da introdução do organizador, conta com abundantes notas de rodapé, sempre oportunas em livros dessa natureza, um texto biográfico sobre cada filho, cronologia do autor e um modesto, mas interessante, álbum de fotografias. Por sua estrutura, o livro não exige uma leitura linear. E dele não podemos cobrar nada se não encontramos reflexões existenciais e referências à psicanálise, à qual alude apenas para falar de honorários por suas obras e consultas. Freud, ao que tudo indica, separava as coisas com a meticulosidade e a sabedoria de que tudo tem sua hora e sua vez. No caso, à parte ser o “pai da psicanálise”, soube ser, pelo que lemos nessas cartas, um pai atento e amoroso.