Ilustração de Heidegger’s Aesthetics – Stanford Encyclopedia of Philosophy.

 

A expressão de McLuahn ganhou o mundo e o rebatizou: “aldeia global”. Mas, antes que o galo tenha cantado três vezes, o mundo virou uma paróquia global. As pessoas se aproximaram tanto numa escala planetária que é fatal que se conheçam (mal, é verdade) e até se enfrentem com maior frequência. E se irritem umas com as outras. E vivam conflitos e angústias antes inimagináveis fora dos limites de uma paróquia. A situação é irrespirável, como há quase um século escreveu Ortega y Gasset em prólogo aos franceses de seu famoso “A rebelião das massas”: “Antes era possível arejar a atmosfera limitada de um país abrindo-se as janelas que davam para o outro. Mas agora esse expediente já não adianta, porque no outro país é igualmente irrespirável”.

O mesmo Ortega, em seu ensaio de intercomunicação humana, “O homem e a gente”, nos lembra que “Todo outro ser humano nos é perigoso — cada um a seu modo e na sua dose particular.” E acrescenta, mesclando ironia à verdade: “Não esqueçam que a criança inocente é um dos seres mais perigosos: é ela quem incendeia a casa com um fósforo; quem, brincando, dispara a espingarda […] e, o mais grave de tudo, ela mesma se põe em perigo constante […]”. Enfim, vivemos — e agora como nunca — à sombra dos perigos em flor. E agora, mais que nunca, os vizinhos se inflamam entre si e pintam suas fachadas de cores distintas, evocando aquele “narcisismo das pequenas diferenças” de que falava Freud. Reparem: “pequenas”, e esse adjetivo vale por uma confissão de falta de grandeza em todos os sentidos.

A aproximação do que antes era distante promovida pela tecnologia nos trouxe, ao lado da magia de vencer espaços e realizar nossos sonhos, outras e várias danações. Porque nossa paróquia não é apenas global, ela é saturada da espécie humana e de seus conflitos socioculturais. Gente, gente e mais gente sobrecarregam a natureza, os recursos físicos, o próprio planeta e, por isso mesmo, sobrecarregam a todos e a cada um de nós. Tudo vai na contramão do que diz velho ditado popular. Ditado que imagino ter surgido em tempos de fome e de duras dificuldades: “Quanto menos somos, melhor passamos”. Em sua pragmática sabedoria, ele decifra a esfinge e corta o nó. Não há qualquer pecado em sermos menos, em diminuirmos o contingente populacional, em sermos poucos, em não nos apinharmos. Assim, por suposto, ficaria mais factível combater as imensas desigualdades.

O confinamento e o distanciamento social causados pela pandemia do coronavírus mostra como o mundo virou uma populosa paróquia e como seria melhor se vivêssemos com literalmente mais espaço, mais silêncio, mais vagareza e mais foco. Não se trata aqui de romantização  e de nostalgia. Mas de se buscar uma utopia para uma vida melhor. Não haverá vida melhor enquanto não respeitarmos uma escala mais condizente com o próprio ser humano, seja no campo das informações, que agora nos esmaga, seja em qualquer outro campo. O corona nos mostra, em negativo, como os lugares são sempre cheios de gente. Isso nunca foi normal. O corona nos mostra a desgraça do tráfego nas grandes cidades, a falta de mobilidade. Como transitar bem, se vivemos tropeçando uns nos outros? Como ser bem atendido com filas intermináveis? Como se pode amar a solidão criadora,  se estamos cercados de notícias falsas, de notícias irrelevantes, de pessoas e propagandas cuja missão é  de chamar a nossa atenção para o que é justamente dispensável?

Sou dos que acreditam que o mundo em nada de substancioso mudará após a pandemia. Mas a possibilidade de mudança, ainda que pouca, existe e não devemos desperdiçá-la. Podemos aproveitá-la para desbastar os excessos. Aproveitá-la para aprender a arte de ser paroquiano global, prevenindo-nos das pequenas ciladas que nos amarguram inutilmente. Para tanto, temos que nos libertar do “narcisismo das pequenas diferenças” quando o que importa são as grandes diferenças. Estas, sim, são as que tem de ser resolvidas e conversadas, com democracia e boa-fé.