O Pássaro Secreto.

 

A propósito do último romance de Marília Arnaud – “O Pássaro Secreto” – recordo o artigo que escrevi e publiquei na Revista Eletrônica “Será?” (www.revistasera.info), por volta de setembro de 2016, com o título “Marília e Clarice”.  Recordo também outro texto meu, um ano depois, sobre problemas da ficção literária no tempo e no espaço geográfico: “De Romancistas, Brasileiros e Russos”.

No primeiro desses textos, fiz a louvação dos dois primeiros trabalhos de Marília – “Suíte de Silêncios” e “Liturgia do Fim”: linguagem rica, bem inserida no contexto nordestino, sensibilidade na caracterização dos personagens, esmero na expressão.  Mesmo admitindo que a chamada ficção intimista não é da minha preferência.

No segundo, em conversa com Ariano Suassuna, aventei a tese de que há um momento histórico propício para o florescimento das obras de ficção, ao redor do mundo.  Na Rússia, por exemplo, teria sido a segunda metade do século XIX, com Gógol, Tolstói, Dostoiévski, Leskov, Tchecov, Turguêniev, Andreiev.  No Brasil, a primeira metade do século XX, com o romance nordestino de José Américo de Almeida, Jorge Amado, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Amando Fontes.  Estes compuseram grandes cenários da civilização do cacau e da cana de açúcar, das agruras da seca, e também de seus rebatimentos urbanos, como no caso do sergipano, último da lista, hoje injustamente esquecido.

Mas o que se observa agora – excetuando as irrupções tardias de Guimarães Rosa, Mário Palmério (“Vila dos Confins”), e José Cândido de Carvalho (“O Coronel e o Lobisomem”), além do próprio Ariano, naturalmente – é o mergulho da ficção nos abismos da alma humana, sem qualquer dimensão sociológica, sem uma clara lição de vida a transmitir.  Como explicar isso?

Arrisco uma hipótese.  Em primeiro lugar, não há mais espaço para painéis da vida social como, por exemplo, ao tempo de Eça de Queiroz, que nos brindou com tantos romances críticos da sociedade portuguesa do seu tempo.  A pletora de meios de comunicação, e a sua velocidade, entopem-nos de notícias, imagens, juízos, análises, interpretações, roubando o campo da exploração mais refletida e crítica da obra ficcional.

Por outro lado, não podemos mais sonhar com uma sociedade alternativa, solidária, igualitária, justa, inspiradora do velho ideal de transformações, que embasava o trabalho de criação de muitos dos nossos romancistas.  A realidade política, a partir do final do século XX, não mais permite ilusões, condenando a ficção a um mergulho na individualidade humana, eivado de pessimismo.  Pois como observou Humberto de Campos, escritor em moda na primeira metade do século XX, “as almas humanas são poços insondáveis, abertos na sombra”.

Encarando agora o recente livro de Marília, vejo que todas as qualidades ressaltadas nos romances anteriores estão presentes, com aprofundamento apenas do tom intimista e sombrio.  Lembrou-me, pelo clima, a “Crônica da Casa Assassinada”, de Lúcio Cardoso, o “dostoiévski brasileiro”.  Mas o romance de Cardoso tem um forte componente sociológico, ao tratar de uma família da aristocracia rural, decadente, desestruturada com a presença de uma criatura feminina, urbana e moderna, envolvendo no processo homossexualismo, adultério e incesto.  Não é bem o caso de “O Pássaro Secreto”.

Este lembrou-me também, por relatar um amor desesperado – ainda mais por não ser explicitamente assumido – o personagem Heathcliff, de Emily Bronte, em “O Morro dos Ventos Uivantes”.  Um amor obstinado, que leva ao crime e à loucura.  O “Pássaro Secreto”, ou “a Coisa”, figurada como uma ave de presa, responsável pelo desvario da protagonista da história (que é narrada na primeira pessoa), pode ser identificado com o “ID” freudiano.  Não por acaso, o indivíduo objeto desse amor chama-se Demian, como o herói de Hermann Hesse, que tinha o “sinal de Caim”, seguia apenas “seus impulsos interiores” e os “desígnios de Abraxas”, “deus e demônio ao mesmo tempo”, e que, enfim, “não se opunha a qualquer dos seus sonhos”.  Versão do “super-homem” nietscheano, foi o personagem ideal para desestabilizar a “heroína problemática” (v. Lukács) de Marília, cujo final é chocante, imprevisível, quase escandaloso.

Impressiona-me o fato de a nossa Marília, de ar tão sereno, ser capaz de conceber, com profundidade, personagem tão dostoievskiano como a sua Aglaia.  Minha surpresa é comparável à de Mr. Thackeray, renomado escritor inglês, ao tomar conhecimento dos tipos desvairados que povoam as obras das irmãs Bronte (Emily, em especial), tão reservadas, discretas, tranquilas como eram elas.  Tipos portadores de paixões loucas, desmesuradas, que se projetavam até além da vida.

Não posso deixar de louvar a qualidade do texto de nossa já consagrada romancista, que nos prende o fôlego até a última página.  Mãos de jardineira na composição das frases, a ourivesaria das palavras, o coração nordestino nas imagens.  (Quem já viu, em qualquer dos nossos ficcionistas, a comparação de uma sobrancelha mal delineada com um embuá?).  Mas lamento não termos mais os desafios e a vida aventurosa de Conrad, Melville, Kazantzakis, Máximo Gorki, Saint-Exupéry, autores de minha devoção, para a inspirarem, só lhe restando mergulhar nos poços insondáveis das almas humanas, de que falava Humberto de Campos.  E a nós, leitores deslumbrados, mergulhar com ela.