A França por estes dias anda às voltas com um polêmico projeto de lei. A população está dividida, e não é para menos num tempo como o nosso em que a visão, potencializada pela tecnologia, vai abolindo a privacidade e mostrando facilmente o que outrora se escondia ou se furtava à vista. O caso é o seguinte: a Assembleia Nacional Francesa vem de aprovar um projeto de lei que prevê punições a quem filmar policiais em ação, criminalizando a gravação e a divulgação das ações policiais. Isso mesmo. Como diz o ditado, lá como cá, más fadas há.

Para tão especioso caso, socorra-nos desde já um filósofo da nossa querida França. Refiro-me a Paul Virilio, nome até bem conhecido no Brasil, onde tem várias obras publicadas. Ele próprio um crítico da tecnologia da imagem. Em seu livro “A máquina de visão”, lembra-nos que “Ver sem ser visto é um dos lemas da não comunicabilidade policial”. A observação cai como uma luva. Mas a mão dessa luva requer muito tato. Desde logo, já que se trata de aparato coercitivo do Estado, um olhar de suspeita recai (ou recairá) sobre as ações da própria polícia. Curioso caso, mas não sem fundamento na tradição policial. Mas a contradição é flagrante num tempo em que, para usar os termos de Virilio, as “máquinas de visão” estão por toda parte para o bem e para o mal. Como, pois, a polícia querer se furtar a ser bem-vista, com trocadilho mesmo?

Nesse mesmo livro, Virilio nos traz uma interessante informação histórica, e tanto mais interessante quanto ficamos sabendo que a polícia francesa já esteve a favor da luz… Relata-nos o pensador francês que “No final do século XVII, o delegado de polícia La Reynie inventa os ‘inspetores de iluminação’ para dar segurança aos parisienses e estimulá-los a sair à noite. Nomeado comandante de polícia, ele sai do posto em 1697 deixando 6.500 lampiões iluminando a capital, logo chamada de ‘cidade-luz’ pelos seus contemporâneos”. Agora, ironicamente, os parlamentares tentam criar, por assim dizer, pontos cegos na atuação da polícia.

Mas a dura realidade acendeu uma luz de alerta. Um alerta tão vermelho quanto racista. Em 21 de novembro passado, dois dias depois de aprovado o projeto de lei pelos deputados, uma equipe de policiais agrediu violentamente um produtor musical negro. A coisa teria ficado invisível se não fosse um circuito de câmeras de segurança que claramente tudo gravou. A coisa foi feia, com cenas de grande brutalidade. E isso tudo numa área nobre de Paris, para desespero dos brios civilizatórios da pátria de Proust. Basta dizer que, segundo a vítima, conforme registra a imprensa, enquanto a espancavam a chamavam de “negro de merda”. Dispensável dizer que já houve milhões de visualizações do triste vídeo. A começar pelo presidente Macron, as mais altas autoridades externaram seu horror e seu escândalo.

E agora, José? Agora a polêmica recrudesce. Em janeiro, caberá aos senadores franceses apreciarem o estranho e insidioso projeto. Já se fala numa nova versão. Enquanto isso, no último sábado de novembro, as multidões, não sem razão, tomaram as ruas de Paris para protestar contra o infeliz projeto de lei. Afinal, por que teria o Estado mais essa parte de lobo? Bem sabem leitores e não leitores de Jean de La Fontaine, para citarmos mais um autor francês, que “A razão do mais forte é sempre a melhor”, como diz a moral de sua fábula “O lobo e o cordeiro”. Cabe agora ao povo francês refutar essa irrupção autoritária e salvar o sensato e civilizado cordeiro.