Para todos os amigos, em particular para Álvaro Novaes

 

Faz cinquenta anos que o conheço. Fizemos Engenharia juntos. Não tínhamos grande aproximação, mas havia certa cumplicidade. A vontade de escapar da aridez do curso, do pragmatismo das disciplinas, da obsessão pela afirmação do status social que era visível nos colegas. Eu me refugiava nos movimentos estudantis, ele nas artes e na descoberta de espaços não conhecidos da capital que começava a adotar, São Paulo.

A vida nos separou. Fiz escolha pela vida acadêmica de professor e pesquisador, às vezes de gestor público. Mudei de cidade, adotei o Recife. Desviei para a Economia que respondia melhor a minhas dúvidas e anseios. Ele, publicitário famoso, diretor de agências internacionais, estruturou campanhas memoráveis. Quem não se lembra do garoto da Bombril? Ganhou o mundo. Fundou empresas, ajudou jovens a se consolidarem nessa difícil área em que técnica e arte fazem uma junção complexa.

Um grupo na internet. O Zap da turma de 1976. Ponto de ligação. A Pandemia nos faz retomar o contato. Sempre divergindo dos colegas queridos, vamos formando uma parceria. Nossos pontos de vista coincidem em grande parte, o modo de ver o que nos cerca é similar. Ele sempre se manifestava, eu preferia reforçar, em geral, no particular. Evitar polêmicas faz parte de minhas preocupações atuais.

Resolve me dar um presente. Manda pelos correios. Não diz o que é, aguça minha curiosidade. Chegaria em dias, fiquei na expectativa.

Recebo um envelope. Um livro de capa dura. Belíssimo, daqueles para se guardar em lugar de destaque na biblioteca. Publicação de 1978. Do ainda denominado Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, em parceria com a Editora da Universidade de São Paulo. O nome é simples e direto: Recife & Olinda.

A apresentação de Gilberto Freyre. Texto conciso e significativo. Uma declaração de amor às duas cidades. Onde se encontra sua brasilidade, onde tem orgulho de sua História, de seus recantos, de seus costumes. Cidades que descreve sob sua ótica. As cidades de seu imaginário, abstraindo as mazelas que o tempo lhes foi incrustrando, de gente que sofre, muito. Mas a história, o orgulho do que nos foi dado e construído, está bem presente. Comovente saber que pertencemos a esse espaço, que somos parte de algo muito diferenciado.

Um trecho me é particularmente caro. Mexe com meus brios. Diz o Mestre de Apipucos: 

“O Recife – tanto como Olinda com os Guenther e Roeser – delicia-se em converter não recifenses em recifenses. Recifenses por adoção que, depois de algum tempo de residência no Recife, passam a só dizer “o Recife” e não “Recife”, e se dizem gente “do Recife” e não “de Recife”. O que tem havido e continua a haver. Foi o caso até de um Tobias Barreto. Chegou, viu e “recifensizou-se.”

Sinto-me contemplado. Aqui me encontro.

O livro é belo, uma série de gravuras a bico de pena de Tom Maia, com legendas de Thereza Regina de Camargo. Uma viagem pelos rincões mais representativos das duas cidades. Sendo andarilho, percorri inúmeras vezes a pé esses locais, sempre parando para admirar detalhes, para entender um pouco mais das duas cidades.

No Recife, as residências tradicionais, o mobiliário, os teatros, as pontes, os fortes, o Bairro do Recife, a Boa Vista e Apipucos. Tudo é registrado nos desenhos. Trabalhei no Forte Cinco Pontas. Fiz uma viagem no percurso que fazia no início dos anos 80.  A Praça do Palácio, o Santa Isabel, a Praça do Diário, o Pátio de Santa Cruz, o de São Pedro e a Igreja do Carmo, os mercados da Boa Vista e de São José, lembranças que não me abandonarão jamais. O Leite e o Galo de Ouro, restaurantes a que o curto orçamento só me permitia ir raramente, o Gregório e a sal presa, em frente à igreja, nos dias de Carnaval.

Olinda é sempre fascínio. Os amigos que lá ainda moram, as igrejas do Monte, São Bento, Carmo e da Sé. A vista para o Recife, o Convento de São Francisco. A Academia Santa Gertrudes, onde minha sogra estudou. A Bica dos Quatro Cantos, ao lado da casa de Marta, que já se foi. A Ribeira na espera do Bloco, nos dias de folia, o Amparo, seus restaurantes e pousadas. Tudo é mágico, tudo é ímpar, só se conhece nestas plagas. 

Uma viagem inesquecível. Propiciada por um amigo cuja sensibilidade e visão das almas soube escolher a dedo. Um presente que gostaria de dar a todos os meus amigos. 

Natal, festa de confraternização, de congraçamento, de permitir que estejamos juntos, mesmo distantes.