A leitura que se faz do passado e do presente pode variar conforme o que está em jogo para os interesses dos agentes envolvidos. Em muitas situações, marcas do passado têm maior importância do que elementos do presente. Conveniências de uns podem dar vezo a se subestimarem marcas do passado, e até fazê-las sumir de processos decisórios.
Imagine-se uma barcaça fazendo transporte misto, carga e passageiros, em grande lago africano. Em pleno curso, carga no limite calculado, e firmado como tal por autoridades que controlam o uso das águas. Já leva o máximo de trinta toneladas de carga, no porão, e vinte e cinco passageiros, com bagagens de até 30 quilos. Trabalha-se com 100 quilos por passageiro (respectiva bagagem incluída), em média. Ocorre que, no próximo porto do percurso, uma festa estava para ser encerrada – quando a barcaça lá aportou. Saíram 150 kg de carga, entraram outros 150. Aguardavam ansiosos 155 passageiros. Prefeririam perder o restinho da festa do que esperar horas e horas a fio pela próxima barcaça. Entrada um tanto forçada. As autoridades encarregadas do controle náutico na região ainda estavam na festa. Ninguém mais a quem recorrer. O comandante foi persuadido a seguir. O anterior assim procedia e tudo dava certo, foi-lhe afirmado, com a força de um juramento coletivo. Todo ano é a mesma coisa. Novidade, só para o novo comandante. Capitulou.
Sai a barcaça e a princípio tudo bem. Mas, embora a época do ano fosse de tempo com ventos leves – nunca passava disso –, o céu cobriu-se de nuvens de tempestade. E chegaram ventos nada leves. E lá veio a marola, logo depois ondas nada suaves. Diante de tal surpresa, não haveria como evitar a embarcação fazer água. Nem evitar que a situação rapidamente saísse do controle. Enfim, dá-se o soçobrar. Excesso e inadequada distribuição do peso, com o convés apinhado.
Vamos aos culpados. Os 180 passageiros? Outras barcaças, de igual modelo, haviam tido melhor sorte diante de algum excesso de lotação. A que soçobrou já havia suportado bem outros temporais, quando satisfazia os limites de carga e passageiros. Teriam sido os 180 passageiros e mais as trinta toneladas de carga a causar o excesso de peso? Mas, igualmente culpados? Ou teria sido o último passageiro a entrar? Ou os dez últimos? A razão parece estar com quem põe a culpa nos 155 passageiros excedentes.
Aí um pré-texto – estória inventada, mas poderia ser real – para o tema central que passa agora a ser diretamente abordado.
Desde 1856, quando Eunice Foote provou que moléculas de CO2 produziam efeito estufa, se sabe que é o número delas na atmosfera que contribui para o Aquecimento Global, não o número das jogadas na atmosfera no último ano. O principal agente antropogênico é o dióxido de carbono, isoladamente contribuindo, atualmente, com 53% do total do efeito estufa. Sua concentração na atmosfera, até a Segunda Revolução Industrial, era de 280 partes por milhão. Em 2021, já se contam 419 partes por milhão, a maior concentração, na Terra, em 23 milhões de anos. Todas as moléculas de agentes causadores de efeito estufa deixam de sê-lo dentro de algum prazo. Por serem absorvidos em processos químicos ou por decaírem para moléculas de menos de três átomos.
O metano tem, na atmosfera, vinte anos de vida média; quanto ao dióxido de carbono, ainda não se sabe exatamente. Mas sabe-se ser de duração de ordem de grandeza superior à da vida humana, acima de três centenas de anos. Enfim, os cientistas da área de química, juntamente com os climatologistas, podem estimar – com base na emissão de gases de efeito estufa de cada nação, em cada ano passado – quanto do estoque de gases de efeito estufa é de responsabilidade de cada nação. Há um limite que pode ser tolerado sem causar aquecimento. Acima desse limite, efeitos retro-alimentadores podem gerar um sistemático Aquecimento Global – e um nebuloso futuro.
O que excede a tal limite, por conta de cada nação, mede a responsabilidade de cada uma no efeito antrópico de aquecimento e decorrências.
O estoque efetivo de agentes de efeito estufa nunca é mencionado nos tratos para resolver o problema de reduzir a chance de desastres climáticos maiores. Na COP26 não foi diferente. As nações são pressionadas a contribuir com esforços de mitigação (redução da emissão de gases de efeito estufa), que têm custos econômicos (em geral alto custo econômico, social e político), além dos custos de adaptação em que devem incorrer. Isso tem lugar sem que consideração haja à contribuição que cada uma dá ao desastre que é o Aquecimento Global.
Os esforços de Mitigação são sempre inferiores aos prometidos por causa da natureza dos benefícios e dos custos da Mitigação. As ações de Mitigação são bens públicos. Cada tonelada de CO2e que é evitada de ser adicionada à atmosfera – ou dela é retirada – beneficia todos os humanos no presente e no futuro. Como todo bem público, que beneficia a todos e tem os custos recaindo sobre um determinado agente, termina por encontrar resistência deste agente a arcar com tais custos. Todos querem que os outros mitiguem ao máximo que puderem, mas cada um quer minimizar sua mitigação. Justiça Climática pressupõe que os custos de mitigação sejam proporcionais à contribuição que cada agente dá ao Aquecimento Global.
Adaptação a Mudanças Climáticas é obrigatório para a sobrevivência das nações. Mas pouco se fala disso, em contraste com estridente ênfase dada à Mitigação. Há dois fortes motivos para tal silêncio. E ouvidos surdos para com quem clama por Adaptação com Justiça Climática. O primeiro é a existência de recursos para tal, nos países desenvolvidos. O segundo, porque há responsabilidade de se subsidiar a Adaptação, com recursos e conhecimento, tal mister devendo ser atribuído aos que causaram o problema-pesadelo, justamente os desenvolvidos. E quando há responsabilidades sobre algo tão dramático, é de interesse dos responsáveis que não se fale sobre responsabilidade. E lá vem a ideia de se financiar a Adaptação. Ora, uns usaram bens naturais pertencentes a todos os humanos – no presente e no futuro. Tiveram benefícios, enriqueceram, se capitalizaram, e causaram o problema. E os que sofrem as consequências sem as terem causado são instados a lutar por empréstimos para se Adaptar e para ajudar na Mitigação. Têm seus compromissos contrariados por mais efeitos maléficos das Mudanças Climáticas, podendo se tornar reféns de atraso no pagamento dos empréstimos. Não seria o caso de, sob ótica de justiça, receberem compensações ao invés de empréstimos?
Antes de se procurar olhar para os dados estatísticos, devem ser levadas em conta duas alternativas. Tratar as informações em termos totais por nação ou em termos per capita, por nação. Isso vai sofrer influência do objetivo que se deseje alcançar. Se o objetivo for enfraquecer os países de porte continental que não pertencem à área do Atlântico Norte – Brasil, China, India e Rússia–, o tratamento é pelo total de cada nação. Que total, o acumulado? Não; este está vinculado à responsabilidade pelo Aquecimento. É claro que para deixar estes países na defensiva, o recomendado é o total de adições anuais recentes. Estes dados estão vinculados ao processo atual de desenvolvimento. Nada melhor para criar obstáculos a este processo como encarecê-lo, como dificultá-lo. É o que se faz ao torná-las vítimas de seus tamanhos, colocá-las na posição defensiva, criando oportunidades de gerar dissensões internas – parte da população se sentindo culpada pelo peso com que a nação é vista tendo quando contra ela se joga informação sobre as emissões do ano anterior. O adequado é se considerar o fato de que as pessoas têm iguais direitos sobre os bens naturais, devendo-se levar em conta os valores per capita das emissões nacionais – sejam acumuladas, sejam adicionais de um ano.
O leitor pode descobrir quais países sofrem sem ter causado os efeitos maléficos do Aquecimento Global. São países com baixa taxa de emissão per capita de gases causadores de efeito estufa, tratados como dióxido de carbono equivalente. Para tal precisamos dos dados: quando foi detectado o Aquecimento Global? Pode-se considerar como tal a data do primeiro relatório do IPCC, 1990. E as contribuições anuais de cada país em termos per capita podem também ser consultadas. A contribuição per capita mundial deste ano constitui uma fração que não teria causado o Aquecimento Global no nível que conhecemos. Alguém pode alegar, com total procedência, que esta contribuição per capita mundial terminaria por tornar inadequado o componente andrógeno do Aquecimento Global, dado o crescimento populacional. Mas é fácil corrigir, abatendo do nível de contribuição per capita do ano de criação do IPCC um componente de correção da contribuição per capita mundial, de forma que mantenha constante a contribuição total mundial anual. Em 1990, enquanto a população global era 5,28 bilhões, a emissão global de CO2e (dióxido de carbono equivalente em termos de contribuição ao Aquecimento Global) foi 29,8 bilhões de toneladas. Para manter a mesma contribuição mundial em 2018, levando-se em conta o crescimento populacional mundial de 44%, o quantitativo da emissão per capita global que mantém a emissão global igual à de 1990 vem a ser 3,92 t de CO2e. Nações com contribuição per capita inferior a esta última não concorrem para o Aquecimento Global com a intensidade que conhecemos. Em geral, são economias agrícolas e sofrem brutalmente as consequências.
Com a continuação da emissão de CO2, mesmo permanecendo ao nível mundial total de 1990, o acúmulo deste gás na atmosfera iria trazer, anos adiante, o Aquecimento Global que já hoje conhecemos. Efeitos, em termos de eventos climáticos extremos (secas, incêndios, enchentes) que já estamos vivenciando com o acréscimo atual de 1,2 grau centígrado sobre a temperatura pré-revolução industrial. Todavia, teríamos muito mais tempo para cuidar e, com certa probabilidade, não chegaríamos às perspectivas atuais de ultrapassar um acréscimo de 1,5 grau centígrado. O fundamental é entender que abundam países na África, América Latina e Ásia, que não contribuem para a perigosa situação que levou à COP26 a vir a ser ocasião de se pretender a salvação da vida humana na Terra. É facilmente entendível o absurdo de se pretender forçar o Vietnã, um dos mais pobres países do mundo, a investir recursos para mudar seu milenar modo de cultivo de arroz, que nunca causou Aquecimento Global, apesar da emissão de metano. Da mesma forma, é interessante observar como países que continuam a emitir gases de efeito estufa – sem diminuir tal emissão em ritmo satisfatório – assumem ter o direito a pressionar a Índia a reformar o milenar processo de convivência com suas sagradas vacas, de forma a fazê-las parar de emitir metano. E se trata de dose de metano que nunca produziu efeito estufa fora dos termos adequados a saudável temperatura atmosférica, favorável ao bem-estar humano…
Urge que se esclareçam os objetivos políticos da opção pelo trato dos dados, quando tomados pelos totais por nação ao invés de em termos per capita por nação. Que sejam estimados e publicados, em termos per capita, os montantes acumulados de CO2e na atmosfera, atribuíveis a cada nação, de modo a que se explicitem as respectivas responsabilidades pelo desastre em construção. Assim, se evitaria o conveniente amaciamento dos dados – no que respeita a identificação dos causadores de desmandos climáticos. A responsabilidade pelo desastre não é da emissão do ano passado. É dos que, arriscando no desconhecido, construíram o montante de gases estufa, na atmosfera, que excede o tolerável. Pode-se considerar que não seja crime doloso. Mas, não seria culposo? Como o do comandante da barcaça soçobrada, que agiu como se houvesse garantia de o tempo respeitar o padrão esperado, sem margem para surpresas da natureza.
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