Para Pessoa (O Marinheiro), “Falar no passado ? isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena”. Só que talvez não seja tão inútil assim. Em 01/01/1959, os guerrilheiros de Fidel Castro desceram da Sierra Maestra e tomaram Havana. Os Estados Unidos, pelo apoio dado por décadas a Fulgêncio Batista, haviam perdido um aliado. Com o embargo comercial que promoveram, a ilha passou a depender da União Soviética para (quase) tudo. Era a Guerra Fria que começava. Em novembro de 1961, os Estados Unidos instalaram, na Turquia, 15 mísseis nucleares Jupiter. E mais 30, na Itália. Com alcance de 2.400km, podiam atingir Moscou, o que não era possível desde o território americano. A URSS vivia período hoje conhecido como “Desestalinização”. Entendeu ter direito a um troco. E, em 14/10/1962, aviões V2 americanos fotografaram, na região de São Cristóvão, a construção de bases para ogivas nucleares. Ameaça grave, que dali podiam facilmente atingir Nova Iorque. Como resposta, os americanos planejaram invadir Cuba. Que jamais permitiriam mísseis tão perto. E Kennedy, preventivamente, decretou um Bloqueio Naval nos mares próximos. Com apoio da OTAN. Contra todas as regras do Direito Internacional.
Os navios mercantes de Kruschev, com as primeiras ogivas nucleares, foram interceptados. Seriam afundados, caso não voltassem. Começaram as negociações. E um acordo foi feito. A URSS não instalaria os foguetes em Cuba. E os Estados Unidos prometiam não invadir a ilha. Fosse pouco, também retirariam seus foguetes nucleares da Turquia. O que foi feito, logo depois.
A guerra nuclear do futuro não se fará com espingardas ou tanques. Mas pelos ares, com o arsenal nuclear. Hoje, a Russia tem 5.977 ogivas, contra 5.550 dos Estados Unidos. Os dois países, juntos, representam mais de 90% do total de armas nucleares do planeta. Ocorre que, disparados a longas distâncias, podem ser interceptados. Por isso a Ucrânia ocupa um espaço físico estratégico, nesse jogo. Que os atuais foguetes nucleares americanos, Cruisse e Pershing II, estão longe ? em Alemanha, Bélgica, Holanda, Itália e Turquia. E podem ser interceptados. Diferente do que se daria, caso estivessem na Ucrânia.
Não se pode, nem deve, apoiar qualquer guerra. É uma tragédia humanitária. E ninguém, aqui, defende Putin. Mas devemos reconhecer que sua posição estratégica, no cenário global, faz sentido. Como a de Kennedy fazia, naquele tempo. Diferente é que, na primeira crise, houve negociações. Os dois lados recuaram. E agora, não. Ao horror dessa guerra, ninguém é inocente. Como escreveu Miguel Souza Tavares (Jornal Expresso), “A coragem está na paz, não nos falsos heroísmos”. Que o bom senso prevaleça, esperamos. E, se comecei com Pessoa, vou também terminar com ele (Álvaro de Campos, Ode Marcial): “Tudo misturado com corpos, com sangue/ Tudo num só rio, uma só onda, um só arrastado horror”. Que o bom senso prevaleça, esperamos. Antes que seja tarde.
Meu caro amigo Zé Paulo: É sempre muito bom recorrer à história para entender o presente, principalmente com o seu conhecimento e sua competência analítica. Mas, me parece também necessário contextualizar as circunstâncias históricas para evitar equívocos que terminam confundindo mais que ajudando a esclarecer. Particularmente a comparação do evento de Cuba com a atual invasão da Ucrânia demanda uma reflexão sobre as diferenças históricas e até logísticas, se me permite.
1. Em 1962, o mundo vivia o auge da guerra fria no equilíbrio do terror nuclear, tensão permanente entre as duas grandes potências – Estados Unidos e União Soviético – o anticomunismo propagado na política norte-americana e o anti-imperialismo americano difundido por todos os partidos comunistas do mundo. Muito diferente do quadro atual. O anticomunismo e medo da expansão comunista no mundo deixaram de ser parte da ideologia norte-americana, até porque a União Soviética dissolveu-se, e a integração econômica e comercial das nações criou um alto grau de interdependência e de uma razoável pacificação entre as potências militares. A Europa está muito longe de ser inimiga da Rússia, a ponto de surgir como um potencial de invasão e declaração de guerra, e tem tido relações comerciais e diplomáticas cordiais e colaborativas.
2. Na crise de 1962, os Estados Unidos detectaram que a União Soviética já tinha iniciado a implantação de misseis de longo alcance e transportando ogivas nucleares, bem diferente do atual conflito na Ucrânia que apenas tem sinalizado a intenção de filiação à OTAN. Mesmo assim, ao contrário do que fez agora pela Rússia, invasão e tentativa de ocupação da Ucrânia, os EUA não invadiram Cuba, em 1962, para impedir a instalação de foguetes lança-misseis. Poderiam até ter aproveitado, maldosamente, a situação para justificar a invasão e a derrubada de Fidel, o que o próprio governo Kennedy tinha tentado um pouco antes com o fiasco da invasão da Baia dos Porcos. Felizmente não o fizeram, porque poderia mesmo ter desencadeado uma guerra atômica. Mas, uma eventual invasão de Cuba naquele momento teria gerado uma onda de críticas em todo mundo, incluindo no Brasil, especialmente da esquerda brasileira.
3. Para ter Moscou e São Petersburgo ao alcance de um míssil, sem tempo para interceptação, a OTAN não que a Ucrânia se torne membro da organização. A Estônia, que faz parte da OTAN desde 2004, está quase tão perto das duas grandes cidades russas quanto a Ucrânia (de Riga a Moscou são 918 quilômetros e de Kiev 862 quilômetros, para falar das capitais). Diga-se, de passagem que ambas as cidades estão muito mais perto de Moscou e São Petersburgo quanto Cuba de Nova York (2.162 quilômetros) ou Washington (1.931 quilômetros), e quase o mesmo que Tampa, capital da Flórida (780 quilômetros).
Subscrevo o seu texto, amigo. Não há inocentes nessa guerra. E faço ainda umas glosas. As articulações para invadir Cuba, repetindo uma nova Baía dos Porcos já estavam em curso, e foi o que motivou a instalação dos foguetes soviéticos, como medida dissuasória. Com o bloqueio determinado por Kennedy, houve a negociação, com a promessa dos EUA, de não invadir a ilha rebelde. A retirada dos mísseis da Turquia foi um complemento de pouca importância, estavam obsoletos, e os americanos já pensavam nisso. Sei dessas coisas pelos próprios livros e filmes documentários americanos. E o velho Fidel, que naquele tempo impunha respeito, queixou-se dos russos, por entender que os gringos não mereciam nenhuma compensação pela simples promessa de não cometer um crime: a invasão.
Mas o fato é que agora não houve nenhuma negociação, nenhuma concessão. Cutucaram um urso feroz com vara curta. E agora sofrem ucranianos, alemães, franceses, e os próprios russos. Não há inocentes, há hipócritas e demagogos, de todos os lados.
De que Putin é um ditador não existe dúvida, o principal líder de oposição, Alexei Navalny, preso desde que voltou a Moscou depois de quase morrer envenenado, acaba de receber uma condenação de mais 9 anos de prisão, evidentemente apenas por ser o principal líder de oposição. Navalny condenou a invasão mas a mídia na Rússia está amordaçada. Mesmo assim, não consigo enxergar a guerra da Ucrânia como um embate entre democracia e ditadura. Vejo mais uma tragédia de erros de avaliação tanto de Putin quanto de Zelensky. Zelensky foi eleito em 2019 em plataforma anticorrupção, e por ter feito como ator o papel de presidente que é eleito, numa comédia muito popular. Zelensky não foi eleito em campanha eleitoral ultranacionalista, e recebeu o voto de mais de 2/3 dos eleitores. Desde que Putin ordenou a invasão da Ucrânia, supostamente em defesa dos russos nas províncias separatistas de Donetsk e Luhansk no leste da Ucrânia, Zelensky passou a encarnar o papel de herói, que já não se apresenta de terno em gravata, mas em blusão verde oliva, herói do povo e de capas de revistas, conclamando e obrigando à resistência, considerado vitorioso em muitos países mundo afora. Vitorioso na Ucrânia também? Para que ser herói com lei marcial, com milhões e milhões de refugiados, com um país destruído, sem saber como será o plantio e a colheita de trigo, com crianças e mulheres morrendo todo dia, com um país que já era pobre reduzido a ruínas? Será possível que o povo ucraniano não preferiria um governo que negociasse? Que deixasse Crimeia ser parte da Federação Russa, que mais de 80% da população ali queria ser parte da Rússia, como expresso em votação? Por que não foi negociada uma federação, em vez de uma guerra que já dura muitos anos contra os separatistas russos que controlam desde 2014 as duas províncias do leste da Ucrânia, Donetsk e Luhansk que se declararam repúblicas independentes. Se é verdade que a guerra está reforçando a democracia, porque não se pergunta à população ucraniana se querem continuar a guerra sem tréguas ao invasor ou se preferem uma negociação? Já que estamos comparando momentos históricos, o que eu enxergo é que estamos atuando no século 21 com valores de nacionalismo e heroísmo do século 19. Para quê? Para arriscar a guerra atômica? Vai melhorar a vida dos ucranianos? Pois democracia em Moscou só acontecerá por atuação dos próprios russos e não por heroísmo e miséria dos ucranianos.
Dicção Russa
Infelizmente, discordo completamente da comparação entre Cuba e Ucrânia. O artigo repete a dicção atual russa para obter simpatias para a sua invasão e evidente destruição das cidades Ucranianas. Ora, no acordo de 1994, que sacramentou a independência da Ucrânia, a Rússia, a Inglaterra e a França garantiram a independência e a defesa(!) da Ucrânia, que por sua vez, entregou todas as armas nucleares à Rússia, declarando para o presente e o futuro a desistência de armas nucleares.
O desejo da Ucrânia de um dia querer ser membro da Otan, ela e a Rússia e todos os outros sabiam que não era possivel, já que os estatutos prevêem que nâo pode haver no país candidato, qualquer conflito armado. Ora, sabendo disso, Putin organizou a invasão no Donbass em 2014 e sacramentou a impossibilidade da Ucrânia de entrar na Otan. O resto é conversa fiada.
Putin, ao contrário do Politburo de Krushev, age sózinho. Os dirigentes russos não eram em si, ditadores. E o assentamento das bases de foguetes em Cuba contava com o apoio de Fidel, que em si, era mais um ditador que qualquer outra coisa. Putin ao contrário, invadiu deliberadamente um país democrático, que ele já mantinha na rédea curta, provocando gastos permanentes com armamentos para conter os rebeldes do Donbass. Suas exigências eram inaceitáveis e ele sabia disso. E está promovendo uma carnificina nas nossas barbas. Paralelo com a crise cubana? Nenhum.
Além disso, os russos têm os tais foguetes supersônicos que já andaram usando nos últimos dias e que devido à sua rapidez, não podem ser interceptados. A Otan não dispõe desse tipo de arma, que pode carregar ogivas nucleares. A verdadeira ameaça e o desequilíbrio de forças existe, e está a favor da Rússia.
Putin persegue o sonho da reconstituição da União Soviética. Depois de Pedro, o grande quer ser Putin, o grande. Ele tem que desaparecer, de uma forma ou outra.
Eu até entendo, considero sérios, os argumentos de Claus Koch e de Sérgio Buarque, mas se limpamos toda a retórica, mesmo se deixamos de lado a comparação do auge da guerra fria, o que sobra é isso: por que não está havendo negociação? Pois não está havendo negociação. Não consigo entender, não entra na minha cabeça, que haja uma guerra, que há o risco de se usarem armas nucleares, porque três pedaços de território cuja população é de maioria russa querem ser independentes ou querem fazer parte da Rússia, mas o governo da Ucrânia não aceita perder tais territórios do leste. Não consigo ver Zelensky como herói da resistência, e sim, como um Presidente que não teve outro mérito, desde que foi eleito em 2019, que o de levar seu país à guerra. Por recusar-se a negociar, por não entender nem o que é União Europeia e nem o que é a OTAN. Não entra na minha cabeça uma disputa territorial dessas no século XXI. Mas é o que temos. E no entanto, quando éramos crianças, minha mãezinha dizia que “quando um não quer dois não brigam”. Recuso-me a pensar que ela estava errada. Não é verdade que a incompetência para a paz está apenas em um dos lados.
Não é a Ucrânia que está invadindo outro estado – é a Russia, com a vontade de Putin. Quem não segue os tratados de Minsk é a Russia, predominantemente. O único negativo que se pode dizer da Ucrânia é que fica sempre com a ideia de um estado centralista, sem pensar na federalização. E depois em pensar em um referendum. Quero ver quem depois quer ser parte de Russia… até as partes que mais falam russo, como Charkiv, Cherson, Mariupol etc. se recusam a entrar no paraíso de Putin.