O Papa….

 

“As poses que ele assumia em oração fazem pensar num santo de vitral.”

John Cornwell

“O papa de Hitler: a história secreta de Pio XII”, de autoria do historiador inglês John Cornwell, publicado no Brasil há vinte e dois anos, é livro que merece leitura e releitura, não só pelo protagonismo do biografado como por se ocupar de um período histórico marcado pela ascensão das massas e dos regimes totalitários. Naturalmente, Pio XII não foi para o autor apenas um pretexto, mas um ator que arrasta com ele toda quase toda a história política do doloroso século 20.

Desde logo, permitam-me observar que o título brasileiro é fiel, “ipsis litteris”, ao título inglês original, de 1999. Não parece ser título de um acadêmico como é o caso de Cornwell, embora ele também seja jornalista. O que parece é ter sido título soprado por experiente editor. Título quente e provocativo, para não dizer hiperbólico, pouco condizente com a equilibrada visão do autor. Título que faz um alinhamento automático de Pio XII ao mandatário nazista e, além disso, nos convida a uma “história secreta”, sendo esta uma evidente alusão a consultas inéditas e pioneiras do autor aos arquivos de depoimentos para a beatificação do papa e da vida institucional e burocrática de Eugenio Pacelli no Vaticano. 

Historiador católico, Cornwell nos chama a atenção por fazer um esforço de isenção ao abordar o ambíguo personagem que é Pio XII, o papa sobre o qual sempre pairou a capital desconfiança sobre sua postura face ao regime nazista e ao Holocausto. Não por acaso, já no prólogo da obra, o próprio autor nos reserva estas palavras excessiva e compreensivelmente ponderadas: “Eugenio Pacelli não foi nenhum monstro; seu caso é mais complexo do que isso, mais trágico. Sua história baseia-se numa combinação fatal de elevadas aspirações espirituais em conflito com uma ambição desmedida pelo poder e controle. Sua vida não é um retrato do mal, mas de uma fatal dissociação moral — uma separação da autoridade e do amor cristão. As consequências dessa ruptura foram o conluio com a tirania e, em última análise, a violência”.

Mas o livro em si, para além do compromisso religioso e complacente da psicologia de seu autor, termina por refutá-lo. É ele mesmo que o reconhece ao dizer, ainda no Prólogo: “Em meados de 1997, quase no final de minha pesquisa, descobri-me num estado que só pode ser descrito como choque moral. O material que eu recolhera, assumindo a mais ampla visão da vida de Pacelli, não servia para inocentá-lo; em vez disso, consolidava as acusações”.

De início, com requinte de experimentado biógrafo, Cornwell faz emergir aos nossos olhos o jovem sacerdote Eugenio Pacelli (ordenado com apenas 23 anos!), que seria um dos maiores diplomatas da Igreja Católica. Este talvez o lado mais fascinante e bem-sucedido do futuro papa. No entanto, a formação do biografado ocorre justamente em meio ao antissemitismo que já vinha do século XIX e que se aguçará com a ascensão de Hitler ao poder. Quanto à religiosidade, não há dúvida: desde muito cedo, Pacelli se soube sacerdote; sua irmã sempre dizia que ele havia nascido padre. A um só tempo, afável e frio, devoto e atento às questões práticas e políticas da vida eclesiástica, Pacelli, após assumir várias missões no exterior, inclusive na Alemanha, chega, em 1930, aos 54 anos, ao mais alto cargo que um cardeal poderia aspirar: o posto de secretário de Estado, do qual só sairia para se tornar papa. Em teoria ou na aparência, pelo menos, nenhum cardeal aspira a ser papa, haja vista os protestos de negação e de humildade dos papáveis e dos eleitos.

As missões no exterior, o convívio com diplomatas e estadistas, o sentido prático da governança das nações, tudo confere ao futuro papa uma “expertise” e uma experiência pouco comuns a um sacerdote. Todavia, conforme Cornwell, abundam os depoimentos e testemunhos de que Pacelli era alguém vocacionado, não lhe faltando devoção e vida espiritual. Segundo o biógrafo, “Ele contemplava as partes em conflito como se estivessem lá embaixo, a uma enorme distância, atribuindo uma equivalência moral a todos os beligerantes, os Aliados e os do Eixo — democracias e Estados totalitários”. Ao que parece, daí para o pecado da omissão era sempre um breve e assustador hiato. Muitos, religiosos ou não, católicos ou não, terminaram por se desapontar com seu distanciamento dos valores democráticos. Todo o seu fascínio histórico parece residir nessa fulgurante e infeliz ambiguidade. 

Na verdade, como disse numa resenha, à época do lançamento do livro, o sociólogo José de Souza Martins, ele foi “o papa do papado”, sem embargo de ter sido um simpatizante do nazismo: “[…] é muito problemático para a história da Igreja que ele tenha concordado com a supressão voluntária do Partido Católico de Centro [alemão] e o afastamento dos católicos da política enquanto católicos”. Martins lembra ainda que “O Partido Católico, que teria votado CONTRA [grifo nosso] Hitler na eleição do chanceler do Reich, havia sido suprimido pouco antes, quando a eleição se deu”. Ao longo da vida, Pacelli repetiria censuras como essa.

Com efeito, tendo passado doze anos na Alemanha da efervescência pré-nazista, Pacelli, antes e durante seu papado, preferiu silenciar os católicos em nome de um férreo anticomunismo e se silenciar a si mesmo ante a perseguição aos judeus, as crueldades dos massacres e a terrível Solução Final. Acuado por pressões de todos os lados (inclusive de seus conterrâneos fascistas), preferiu a evasão, a pompa e a distância dos fiéis. Ao que parece, Pacelli nunca chegou a compreender (tendo ironicamente todas as condições para isso) o seu papel histórico. A santidade que, de fato. buscava não foi mais que um teatro para si mesmo e seus circunstantes. Santo de vitral, temia as pedras que lhe pudessem quebrar a alma obstinada e fria. 

O livro de Cornwell, no qual evidentemente não faltam os cenários e personagens nazifascistas da época de Pio XII, recorda-nos o quanto tais cenários, com sua violência, com suas mentiras, com sua destruição da liberdade, com mil acomodações de consciência e apetite pelo poder, continuam prevalentes em nossos dias. O mundo continua repleto de Pios XII, e a História, como uma roteirista de terceira categoria, se repete com amargo e indisfarçável mau gosto.