Depois da pandemia do Covid 19, que evidenciou a excessiva concentração da produção mundial de insumos médico-hospitalares em dois países, China e Índia, a guerra da Ucrânia e as sanções econômicas contra os invasores russos provocaram um segundo abalo no sistema econômico global. Este último abalo, bem mais severo e amplo, considerando que os países em conflito são grandes produtores e fornecedores mundiais de petróleo, de gás natural, de trigo e de fertilizantes, e que o isolamento da Rússia representa uma tácita ruptura de relações políticas e diplomáticas. A quebra da confiança na interdependência econômica e comercial organizada em cadeias globais de valor deve levar os países a alguma forma de proteção diante da exposição externa, mesmo algumas medidas protecionistas em torno de produtos e insumos estratégicos. A Europa buscando reduzir a dependência externa de petróleo e gás natural, o Brasil procurando ampliar a produção de fertilizantes para não sofrer com a interrupção do fornecimento externo. 

Nada, contudo, que represente um retrocesso no processo de globalização. A interdependência global, construída nas últimas décadas, apoiada na revolução nos transportes e, principalmente, nas telecomunicações, ampliou a eficiência da economia mundial, beneficiando os países e as regiões que conseguiram inserir-se na globalização. O grande impulso deste movimento de globalização, a partir da década de 90, foi resultado de dois importantes eventos combinados e independentes: a inserção da China no comércio mundial e o desmonte da União Soviética, com a abertura dos mercados da própria Rússia, das repúblicas soviéticas e dos países da esfera de influência da União Soviética (antigo COMECOM)[1], vários dos quais passaram a integrar a União Europeia. 

Excetuando a Rússia, isolada da globalização pelas sanções econômicas e pela desconfiança geral, nenhum desses países do antigo COMECOM pretende ficar de fora do mercado global; ao contrário, a Ucrânia acelera o pedido de incorporação à União Europeia. Menos ainda a China, país que tem sido o maior beneficiário da globalização e da integração das cadeias globais de valor. Por isso, é um grande exagero afirmar que as sanções econômicas à Rússia vão levar ao “desmoronamento da globalização”, como sugerem alguns analistas da cena internacional, como Larry Fink, executivo-chefe da Black Rock (citado por Hubert Alquéres em artigo publicado nesta Revista). Embora os desdobramentos da guerra da Ucrânia e os impactos e desdobramentos das sanções econômicas ainda sejam imprevisíveis, eventuais medidas protecionistas dos países não deverão abalar a interdependência e as cadeias globais, exceto em alguns produtos e insumos de grande importância estratégica. Muito diferente de uma quebra de confiança na interdependência que leve à desorganização ou suspensão das cadeias globais de suprimento. 

No fundamental, as grandes potências sabem que um movimento de desglobalização seria um desastre para a economia mundial e para todos os países, especialmente para a China. Nunca é demais repetir que o “milagre” chinês das últimas décadas não teria sido possível se não fosse a intensa integração econômica e comercial da China com os Estados Unidos e com a Europa, que provocou uma intensa migração de empresas para o território chinês e permitiu a invasão de produtos chineses nas economias nacionais, em parte favorecida por formas de concorrência predatória nas relações de trabalho. Os “perdedores da globalização”, regiões dos Estados Unidos e da Europa que não conseguiram acompanhar as transformações decorrentes das inovações tecnológicas e da integração dos mercados globais, foram vítimas deste “milagre chinês”. 

A Rússia pode responder ao isolamento econômico com uma ampla substituição de importações, graças ao tamanho do mercado interno e ao grande potencial de riquezas, mas padecerá ainda de graves estrangulamentos no curto e médio prazos. Putin parece apostar também na formação de um bloco econômico na Eurásia, juntamente com China, Índia e outros países da Ásia e mesmo do Oriente Médio, como fala Hubert no referido artigo. Mesmo que venha a constituir-se este novo eixo econômico e comercial, nada indica que a China e a Índia, os dois maiores parceiros, queiram se afastar do grande mercado global ao qual estão já totalmente integrados (os Estados Unidos, a União Europeia e o restante da Ásia). Nada comparável com o COMECOM, que constituía, de fato, um bloco isolado da economia capitalista a nível internacional.  

A China deve aproveitar a fragilidade e o isolamento da Rússia para abrir novas oportunidades econômicas e comerciais, o que talvez inclua a possível formação de um tal bloco comercial da Eurásia. Mas não vai querer, nem pode, desligar-se das cadeias globais de valores que atraem investimentos e ampliam os mercados para os produtos chineses. Por isso, da mesma forma que foi a principal força aceleradora da globalização, nas últimas décadas, a China será a fiadora da consolidação da integração e interdependência econômica mundial, independente do seu relacionamento com a Rússia.  

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[1] COMECOM- Conselho para Assistência Econômica Mútua era o bloco de integração econômica e comercial formado por onze países do bloco soviético, liderados pela União Soviética, a maioria da Europa Oriental, além de Vietnã, Mongólia e Cuba, que implodiu em 1991.