O risco de explosões nucleares, nessa guerra da Ucrânia, volta nossos olhos para o passado. E começo por lembrar que Robert Oppenheimer passava horas vendo barcos navegar sem pressa, poeticamente, no Rio Potomac. Era uma pessoa sensível. Não só ele. O grupo do Projeto Manhattan gostava, especialmente, de ouvir música romântica – como o Fausto, de Gounoud. E de ver balé – como O Aprendiz de Feiticeiro, que assistiram um mês antes de explodir Hiroshima. Como se fosse premonição. Esse nome, Manhattan, foi escolhido em homenagem à enorme população de Nova York. Uma das bombas de Urânio 235 acabou batizada como Little Boy (rapazinho). A outra, de Plutônio Processado, como Fat Man (homem gordo). Tudo para lembrar que o objetivo daquelas pessoas delicadas era desintegrar outras pessoas. Como as milhões que habitam Manhattan. Não por acaso o barulho da explosão, no teste feito em Los Alamos, tinha o som quase perfeito de uma gargalhada humana. Em meio a elétrons e nêutrons se dilacerando, um estranho riso que vinha do coração da terra e subia na direção do céu, misturado a fogo, morte, fumaça, desalento e chumbo.
Fins de julho de 1945. A guerra estava decidida. Alemães, já rendidos. Japoneses tentavam, desesperadamente, apenas pedindo que seu imperador fosse poupado. Não sabiam é que outra guerra já tinha começado, por dentro daquela. Com Stalin se preparando para invadir o Japão. Seria uma afronta ao império americano. Sem contar que chegara o tempo de vingança contra aqueles que destruíram Peal Harbor e mataram 12 mil em Okinawa. Só na semana que precedeu Hiroshima, como aperitivo, foram 100.000 corpos no chão de Tóquio. Usando apenas bombas tradicionais. Sabor doce de sangue a serviço da democracia. E o melhor ainda estava por vir. Um B-29 da U.S. Air Force foi adaptado para acomodar aquele gigante de aço atômico. Além das duas bombas fabricadas houve uma terceira, de Plutônio como Fat Man – aquela testada, com êxito, no deserto de Alamogordo (Novo México). Para o Japão, primeiro, voou a de Urânio. Desse errado e ainda sobrava a restante, de Plutônio, com tecnologia já testada. Nos Estados Unidos, muitas vozes pediam clemência. O fim da matança. Não seriam ouvidas.
Depois tudo acabaria em filme da Nouvelle Vague, “Hiroshima, mon Amour”, de Alain Renais. A história de romance entre uma francesa (Emanuelle Riva) e um japonês (Eiji Okada), para Claude Chabrol “o mais belo filme que já vi”. A arte nem sempre imita a vida.
Segunda, 6 de agosto. Ao sol nascente das 9.15, Little Boy fez 120 mil vítimas em Hiroshima. Quase todas crianças, mulheres e velhos – que pais e maridos estavam nas frentes de batalha. A cidade foi escolhida por acaso, entre quatro. Sem que houvesse, por lá, um único objetivo militar. A explosão se deu a 570 metros acima do solo, produzindo um cogumelo de fumaça com 18 quilômetros de altura. E a temperatura, na terra, chegou a 300 graus. Fim de tarde, e relatório da Cruz Vermelha informou que naquele resto de tijolos e carnes já não havia o que queimar. Faltava decidir o que fazer com a última bomba. Nem mais havia guerra. Só que os burocratas certamente reclamariam que tanto dinheiro, a valor de hoje cerca de 50 bilhões de dólares, fosse desperdiçado em algo que nem teria sido usado. E o B-29 voou novamente.
Quinta, 9 de agosto. Às 11.02 da manhã, Fat Man faz mais 90.000 almas em Nagasaki. Novamente, uma cidade sem qualquer alvo militar. Novamente, só crianças, mulheres e velhos. Oppnheimer, depois, se recusou a fazer uma bomba mais potente ainda. O macartismo considerou imperdoável ingratidão para com país que o acolhera tão generosamente. Seu irmão e a mulher dele acabaram processados. Acusados de ser comunistas, foram proibidos de trabalhar para o governo ou de ensinar. A guerra fria começava a fazer vítimas, com menos sangue embora, também nos Estados Unidos. A humanidade vê com horror o passado, sonhando um futuro diferente. Melhor. E mais fraterno. Deus nos proteja.
P.S. Karl Marx Guimarães Coelho era dono de uma pequena oficina de reparos. Em 1964, no começo da Redentora, vinha da Conde da Boa Vista pela Rua do Hospício. Já na calçada do 4º Exército (em frente à Faculdade de Direito), um militar considerou suspeita sua bolsa e perguntou
? O que tem aí dentro?
? Nada.
? Quero ver.
E encontrou, lá, uma nota “comprar fios e bobinas para a bomba”. Perguntou o nome do cidadão
? Karl Marx.
Era demais. Com certeza, comunista. E uma bomba, com certeza terrorista. Foi preso. Sem ter tempo de explicar que se tratava de bomba compressora para um ar-condicionado que estava consertando. Apanhou tanto que passou três meses no hospital. Viva a Democracia.
Oportuno esta lembrança da violência destruidora da bomba atômica neste momento em que a Rússia, maior potência nuclear do mundo ao lado dos Estados Unidos, invadiu a Ucrânia numa agressão desmedida e está tentando, felizmente, sem sucesso, dominar o país. É oportuno, particularmente, porque logo no início da invasão, Putin colocou as armas nucleares da Rússia em alerta máximo e fez uma advertência aterrorizante àqueles que ousassem se opor à sua guerra. Vale lembrar: “Quem tentar interferir, ou ainda mais, criar ameaças para o nosso país e nosso povo, deve saber que a resposta da Rússia será imediata e levará a consequências nunca experimentado na história”. Ainda bem que, no processo de legitimação da independência da Ucrânia, em 1994, o Memorando de Budapeste assinado por Boris Yeltsin e Bill Clinton, teve o bom senso de definir a transferência de todo o arsenal nuclear da Ucrânia para a Rússia, em troca da garantia da soberania e integridade territorial do novo país. Naquele momento, a Ucrânia concentrava o terceiro maior arsenal nuclear do mundo. Se não tivesse renunciado a este poderio atômico, nós poderíamos estar assistindo agora a uma guerra entre duas potências nucleares. Equilíbrio do terror que poderia ser quebrado a qualquer momento desencadeando uma guerra atômica. Mesmo assim, a advertência de José Paulo é importante para que não tenha que escrever outro artigo om o outro artigo com o título “Mariupol, meu amor”. Embora, sem uso da bomba atômica, esta cidade portuária da Ucrânia foi totalmente destruída pelas tropas russas, como está analisado no Editorial.