A Besta Fera – autor desconhecido.

 

Muito suor intelectual terá corrido até que se entenda algum dia Bolsonaro e seu quadriênio de devastação. Jornalistas, economistas, pesquisadores e cientistas políticos em geral têm tentado decifrar a esfinge que devora o País. Buscam compreender uma espécie de “língua estrangeira”. Os estudiosos já sabiam o que poderia vir pela frente com a eleição de Bolsonaro; o que não esperavam era a intensidade alucinante da destruição e do afrontamento às instituições. O estresse é geral, e onde não há estresse é porque o bolsonarismo já se instalou de mala e cuia.

Compreender o bolsonarismo não tem sido fácil. Seu substrato é plural, e, se há ideias, são tão heteróclitas que demandam uma nova e prudente exegese. A falta de ideias o aproxima do fascismo, movimento que, a rigor, segundo Umberto Eco, nunca teve “uma filosofia própria”. Mas, à semelhança do coronavírus, à medida que o tempo passa, vai se acumulando sobre o bolsonarismo um conhecimento precioso, aliás conseguido à custa, tal como no caso do vírus e das vacinas, de muito esforço conjunto.

Assim, em mais um desses trabalhos conjuntos, a historiadora Heloisa Starling, o cientista político Miguel Lago e o filósofo Newton Bignotto lançaram este ano o livro “Linguagem da destruição: a democracia brasileira em crise”. Lago se debruça sobre a resiliência de Bolsonaro; Starling sobre a “utopia regressiva” do bolsonarismo; e Bignotto analisa o presidente e seus movimentos “entre o populismo e o fascismo”. São três ensaios que buscam se interpenetrar e, de fato, o conseguem, sem para isso se contorcerem em rebuscadas análises. A clareza é um belo traço em comum dos três textos, o que recomenda o livro não só para acadêmicos como para o público em geral.

Já na Introdução, os três autores nos lembram que nenhum conceito conhecido, tomado isoladamente, dá conta do fenômeno. A singularidade é uma das poucas marcas claras do bolsonarismo. Eis o que falam: “Conceitos como totalitarismo, fascismo, populismo se juntaram a vocábulos como biopolítica, necropolítica, neofascismo para constituir um conjunto de referenciais teóricos que tem sido mobilizado em várias esferas de debate […] Como explicar o bolsonarismo ainda é uma questão em aberto”. De concreto, pode-se apontar unicamente a sanha da destruição, que foi antecipada em 17 de março de 2019, em Washington, na casa do embaixador brasileiro, quando o presidente pronunciou estas palavras: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que destruir muita coisa”. Agora, no fim de seu mandato, pode-se observar o quanto esta última e estranha frase era programática. O ineditismo dessa postura de destruição por parte de um presidente recém-eleito não passa despercebida a nossos autores. As prometidas nomeações técnicas se transformaram em nomes medíocres em cargos estratégicos, chegando tais nomeações “[…] a um propósito: indicar inimigos das próprias instituições para seu comando, visando contribuir para a desconstrução mais ampla do Estado”.

Os três autores são unânimes e incisivos: “[…] não há paralelo histórico. Até a eleição de 2018, nenhum governante legitimamente eleito se aproveitou da chegada ao poder para degradar o sistema político, minar a ordem democrática e corroer as instituições até o colapso final”. Esse ineditismo tomou de surpresa todos os atores sociais e todas as instituições. No mais, “[…] o movimento é regressivo, e o passado fornece adesão. É um falso passado, mas funciona como modelo, sistema de explicação e mensagem mobilizadora: enfim, uma “utopia regressiva”, como batiza Heloisa Starling.

Do ensaio de Lago, sublinhamos sua análise de como os intelectuais patinaram na compreensão do bolsonarismo, uma vez que “As ferramentas analíticas da ciência política foram insuficientes para explicar o sucesso de Jair Bolsonaro no pleito, pois ele não se enquadra em consistente evidência da literatura acadêmica”. O pesquisador também se detém no papel das redes sociais, que substituem “autoridade científica” por “opinião”. Em seu uso das redes, o presidente, diz Lago, soube “habilmente fundir bolhas diferentes: os neoudenistas da luta contra a corrupção com os neopentencostais e com os neofascistas”. O analista toca igualmente num ponto geralmente desprezado pelos intelectuais: a mística, pois, segundo ele, uma importante inovação do bolsonarismo é a recuperação da mística na política, aí incluída, claro, a relação com o eleitor evangélico.

Por sua vez, Heloisa Starling reflete sobre o papel do reacionarismo na história do Brasil como uma permanente ameaça aos ideais democráticos. Daí a repulsa pela noção de que, desde a Revolução Francesa e a Declaração de Independência dos EUA, “a titularidade do poder do soberano” passou “para o conjunto dos cidadãos”. Para a historiadora mineira, “A destruição não é efeito colateral do reacionarismo. É seu propósito”. Portanto, nada de expandir direitos sociais. Daí também a luta que o bolsonarismo vem travando contra a Constituição de 1988, cuja feição moderna é sensível “às minorias políticas” e “avançada nas questões ambientais, empenhada em prever meios e instrumentos constitucionais legais para garantir a participação popular”. O que Bolsonaro intenta é uma “utopia regressiva” calcada no ideário da ditadura militar de 1964, para isso contando com apoio de eleitores em todos os estratos sociais.

Finalmente, o filósofo Newton Bignotto vê no bolsonarismo importantes traços fascistas e populistas. Um desses traços é o caráter de “movimento”, que, por ora, dispensa tornar-se uma organização política estável. A falta de clareza de propósitos e de consistência organizacional como que camuflam as fraquezas do próprio movimento. De resto, o próprio irracionalismo assim como sua evidente propagação são outra herança de cunho fascista do atual governo. Por outro lado, o populismo bolsonarista segue o já conhecido receituário: ataques à imprensa, aos partidos políticos e ao aparelho judicial. O objetivo é implantar “[…] um governo baseado numa destruição progressiva das instituições democráticas”, colocando “a violência no centro da vida política e das relações sociais”. 

Eis, em breves e precárias linhas, a síntese de um livro que traduz, para a fruição crítica de seus leitores, a “linguagem bolsonarista”. É preciso, pois, aprimorar nossa escuta para, aos poucos, decifrar os signos que se condensam, tal uma nuvem sinistra e sombria, numa única palavra: destruição.