“O terceiro excluído: Contribuição para uma antropologia dialética” (Zahar, 2022) foi lançado às vésperas da eleição. Inacabado e às pressas, uma apostila de notas para aula. Mas, se é que há menção de eleição, é a de 2018, para contar como Noam Chomsky entrou na casa dele. Pois Chomsky viera fazer uma visita de solidariedade a Lula, então preso. E Haddad conta do café da manhã em sua casa, com sua companheira Estela, e Chomski e sua esposa. O encontro abre a Apresentação, “Por um novo horizonte utópico”, que o próprio Haddad faz de seu livro.
Confesso: já não pertenço à academia e, apesar de bacharel em filosofia pela antiga Universidade do Brasil, não teria me dado ao trabalho de ler o livro não fosse do nosso novo Ministro da Fazenda. Resenhas podem ser parentes (muito humildes) daqueles “Doctor Honoris Causa” concedidos a Presidentes de um país por alguma Universidade de outro país. Desconfio até que, por méritos acadêmicos, esse livro não teria sido publicado nesse estado de rascunho. Mas Fernando Haddad não é qualquer professor universitário, é celebridade. Marcos Lisboa, presidente do INSPER, reconheceu a relevância da experiência política do intelectual ao convidá-lo para professor no Instituto. E a Zahar, para a qual já fiz traduções no tempo que era de um amigo querido, Jorge Zahar, tem tino comercial, o livro vendeu bem.
Não vai discutir eleição, nem a passada, nem a que estava por acontecer. Mas faz o relato da sua derrota eleitoral em 2018 e intercala parágrafos de autobiografia, desde a infância, e mais tarde o trânsito entre atuação de político e atividade acadêmica. Este não é o livro que queria escrever – diz ele -, e sim, pretendia contribuir para a teoria do desenvolvimento, examinando relações entre patrimonialismo e escravidão, porque os vários autores que cita, como Raimundo Faoro e Fernando Henrique Cardoso, não teriam aprofundado “suas intuições”. Decidiu-se pelos temas desse livro porque descobriu “um certo discurso evolucionário” (sim, de evolução) na economia, ademais “restrita a modelos abstratos matematizados e o da macroeconometria”.
Decidiu-se assim por algo mais abstrato ainda: “o objetivo imediato desta obra” (como se expressa ele) “é apresentar novas bases teóricas da emancipação humana” ou então, como diz no fim do livro “abrir caminho para encontrar a humanidade”. E isso jogando com palavras, que de dados e fatos o livro não trata. Transcreve opiniões de autores as quais sequer analisa, muito menos confronta com qualquer “realidade”. Não será fácil descobrir o que defende ou o que rejeita Haddad no seu texto, que ele classificou como sua opção por “reflexão e aprofundamento”.
São três ensaios. O que extraí do primeiro, “Novas investidas da biologia” é que pretende mostrar que a linguagem dos animais humanos não é mera evolução biológica. Entendi como parte de seu plano geral de mostrar que a teoria da evolução não se aplica à cultura: instinto não é linguagem, e a linguagem não é instinto. Para mostrar isso, mesmo com ambiguidade, monta um enorme espantalho para bater nele: 58 páginas de trechos extensos de citação de autores que são nada menos que 63 notas de rodapé. Fora as citações que aparecem sem seu respectivo numerinho. Até para comentar as ideias de um autor se serve do comentário de mais outro autor, num total de 40 autores citados e contrapostos neste ensaio sobre relações entre biologia e cultura.
O segundo ensaio, “Por uma antropologia dialética”, mais alentado, um “diálogo complexo” (segundo Haddad), usa o mesmo método de montar um espantalho para destruí-lo, de 71 citações em 72 páginas. Essencialmente, faz um grande esforço acadêmico para mostrar que não se pode (ou não se deve) aplicar a teoria da evolução à cultura. E, no entanto, que a evolução cultural (histórica) não é um fenômeno idêntico à evolução biológica é evidente. Está claro para historiadores e biólogos, é evidente até da pesquisa genética. Parece que Haddad quer ir mais longe, mostrar que não há “evolução” de nenhum tipo na cultura, que o termo “evolução” não se deve aplicar à cultura em geral nem a diferentes culturas. Ao menos ao conceito de “cultura” que apresenta.
Do meu tempo de professora da UnB, lembrei das nossas dúvidas acadêmicas sobre notas de rodapé. Uma tese minimalista de então era que notas de rodapé prejudicam a leitura, que para um texto fluido é melhor moderação: se a nota de rodapé é suficientemente importante, deve ser incorporada ao texto, e se a nota de rodapé é apenas “name dropping” deve ser eliminada. Pois Haddad incorporou ao texto todas as notas de rodapé, e fez uma colcha de retalhos da qual não se sabe precisamente o que está defendendo. É tanta citação, e tanta citação apud, que teve que inventar um novo formato acadêmico. Cada citação tem seu numerinho. Quando se vai ao fim do livro checar a citação, aparece para cada numerinho apenas o sobrenome do autor e data. Magister dixit. Para obter a citação específica é preciso ir à Bibliografia. Outra novidade esquisita, para um trabalho acadêmico, é aparecer na página do copyright um nome responsável por “Tradução das citações em inglês”, que, aliás, em alguns casos, está bastante duvidosa.
No terceiro e último ensaio, “A linguagem simbólica e o tempo da cultura”, volta à linguística, para insistir que sociedades, com sua língua e cultura, não evoluem como espécies. Cita diversos linguistas e neurocientistas mostrando diferenças entre o animal humano e outros animais, até carrapato. Discute com diversos autores sobre simbologia, sobre como pessoas com o mesmo comportamento verbal chegam a visões de mundo diferentes, a questão da linguagem e das traduções corretas mas diferentes, a relação (ou não) entre filosofia e ciência, a diferença entre cultura e subjetividade. Insiste de várias maneiras em colocar a linguística exclusivamente no campo das ciências sociais. Insiste que linguagem é aprendizado e não instinto. O formato da redação se mantém: agora são 93 citações em 81 páginas, e solene ausência do factual, exceto algum fato descrito por outrem. Chega a afirmar que sociedades não evoluem, pois, segundo ele, não há fundamento para afirmar que uma antiga sociedade pastoril é menos evoluída que uma moderna sociedade industrial. Haddad, no caso, parece ter caído na armadilha de seu próprio discurso: ao entender que não há critério biológico para definir “progresso” da humanidade (algo que os cientistas já sabem há muito tempo), acabou por acreditar que “progresso” não existe por critério algum. Segundo ele, as sociedades humanas não evoluem, mas “revoluem” (sic). Se é que entendi, pois esse é o texto mais emaranhado, no qual pretende ter mostrado que “ao expulsar a contradição de seu repertório, as humanidades deixam-se biologizar, e a dimensão específica do humano perde-se num pseudocientificismo que, da ciência só guarda a aparência.” Esse livro, de ciência, nem ao menos aparência tem. Mas, depois de citar Hegel, que segundo Haddad teria colocado a contradição no lugar errado, apresenta a missão dos cientistas sociais (economistas inclusive): “Devemos reentronizar a contradição no reino das ciências humanas (agora no lugar certo) se quisermos abrir caminho para encontrar a humanidade.”
Haddad explica que o título do livro é um jogo de palavras com o princípio da lógica formal (aristotélica) que estabelece que não há opção entre ser algo ou ser a negação desse algo. E Haddad tratou de refutar esse princípio. A impressão que me ficou da leitura é que é jogo de palavras de ponta a ponta, da qual ficamos sem saber o que é verdadeiro e o que é não-verdadeiro. Tudo bem que o filósofo queira escrever um livro defendendo alguma vaga utopia. Do Ministro da Fazenda, em seu afã de “reconstruir a casa”, espero que consiga privilegiar os sinais de sensatez do seu discurso de posse.
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