Depois de passear noutro lugar durante o governo 2019-2022, o COAF – que chegou a ter o nome mudado por alguns meses para o genérico “unidade de inteligência financeira” – volta para o Ministério da Fazenda em 2023. Quando foi criado, em 1998, situou-se na estrutura do Ministério da Fazenda, com funções de inteligência financeira decorrentes de acordos internacionais de combate à lavagem de dinheiro. Vale recordar a ementa da Lei no. 9.613 de 3 de março de 1998, sancionada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso: “Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências.”

A lei começava por definir o que era o crime de “lavagem” de dinheiro: esconder ou dissimular bens, direitos e valores provenientes diretamente ou indiretamente de crime. Em princípio, dinheiro obtido em qualquer crime, mas o Art. 1º lista tráfico de drogas, terrorismo, contrabando de armas e munições, extorsão por sequestro, crime contra o sistema financeiro nacional e praticado por organização criminosa.

Não havia por que colocar o COAF – que é parte de um sistema internacional de troca de informações para combater a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo – dentro da estrutura do Banco Central, cuja tarefa é obter o cumprimento das metas para a inflação fixadas por seu Comitê de Política Monetária. Unidades de inteligência financeira, isto é, organizações oficiais de combate à lavagem de dinheiro originado em ilícitos, existem, com diferentes nomes, em todos os países do mundo, em decorrência de acordos internacionais. Em geral, não estão no respectivo Banco Central. Nos Estados Unidos, por exemplo, a unidade está subordinada à Secretaria do Tesouro e não surgiu a ideia de transferi-la ao Federal Reserve. No Brasil, há 21 anos, foi colocada no Ministério da Fazenda, onde está também a Secretaria da Receita Federal, que eventualmente pode ajudar o trabalho de inteligência.

Mas não é sua localização na estrutura administrativa o que mais causou ruído em 2019, e sim, os vários movimentos para restringi-lo. Uma missão da OCDE a Brasília em 12 e 13 de novembro de 2019 já deixou claro que, para o Brasil se tornar membro da OCDE, o COAF teria que ser fortalecido, e não escondido ou tolhido em suas funções. Essa missão, do Grupo de Trabalho da OCDE sobre Suborno (que monitora a Convenção da OCDE sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais), emitiu depois da visita uma nota de título alarmante, disponível no site oecd/org: “O Brasil deve cessar imediatamente ameaças à independência e à capacidade das autoridades públicas de combater a corrupção.” Verdade que o COAF – mesmo tendo alcançado manchetes nos últimos dias de dezembro de 2018, por um relatório que apontou movimentações atípicas relacionadas com a família do Presidente que acabava de ser eleito – era e continua sendo uma entidade pouco conhecida da maioria dos brasileiros. Mas não foi por isso nem por acaso que as autoridades de plantão não deram publicidade à visita do grupo da OCDE.

E não foi por acaso que o grupo veio a Brasília e emitiu sua advertência em novembro de 2019. Poucos meses antes, em julho, uma decisão do então Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, proibiu o COAF de compartilhar informação com órgãos de investigação sem prévia autorização do Poder Judiciário. A decisão foi provocada por um pedido da defesa de Flavio Bolsonaro, e paralisou as investigações do “caso Queiroz”. Suspendeu de imediato centenas de outras investigações sobre crime organizado, financiamento de terrorismo, tráfico de drogas e de armas, e intentos de “legalizar” dinheiro obtido em atividade antecedente criminosa. De quebra, teria aliviado o incômodo dos Ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes com o vazamento de investigações das autoridades financeiras sobre as finanças das suas respectivas cônjuges.

O Ministro Dias Toffoli alegou que sua decisão era defesa da cidadania e da sociedade contra o Estado, o COAF estaria usurpando sua competência, ameaçando os direitos do indivíduo e o sigilo bancário. O Ministério Público estaria pedindo ao COAF que levantasse a movimentação financeira de alvos específicos. Na verdade, se existiram vazamentos que implicavam quebra de sigilo bancário, isso não aconteceu devido às funções precípuas do COAF, bem definidas na lei. Então os abusos é que deveriam ter sido corrigidos, e não simplesmente tratar de manietar o COAF.

Os bancos é que têm acesso às contas dos clientes, não o COAF. Mas os bancos são obrigados por lei à fiscalização prévia dos seus clientes. O Banco Central explicita, por uma série de comunicados, as hipóteses de movimentação que cada banco deve comunicar ao COAF. Atualmente, por exemplo, os bancos devem automaticamente comunicar ao COAF depósitos ou saques superiores a 100 mil reais. Esse limite era metade disso em 2018. Mas devem também comunicar movimentações suspeitas. Se o COAF suspeita que alguma transação pode configurar prática criminosa, sonegação fiscal ou evasão de divisas é obrigado por lei a informar formalmente o Ministério Público e a Receita Federal para que estes investiguem se há ilícito. O Ministério Público não começou por conta própria as investigações que geraram os protestos contra o COAF, sobre 21 deputados e seus servidores na ALERJ. Recebeu um relatório do COAF sobre operações atípicas, nos termos das leis no. 9813 de 1998 e no. 12.683 de 2012.

Diante das queixas contra o COAF quando estas investigações vieram a público, sobretudo por que havia entre os investigados um filho do Presidente que acabava ser eleito, foram tomadas pelo governo, além da decisão de Dias Toffoli, outras medidas que funcionaram para tirar o foco do que realmente estava em jogo, a suspensão das investigações. Primeiro, na passagem de 2018 para 2019, falou-se em mudar o COAF para o Ministério da Justiça. O presidente do COAF, Antonio Carlos Ferreira de Sousa, cujo mandato se encerrava, defendeu o trabalho de sua equipe, e até foi favorável à mudança para o Ministério da Justiça. Mas já então se sabia nos bastidores de atritos entre o Presidente da República, Bolsonaro pai, e seu Ministro da Justiça Sérgio Moro, que não tinham a ver apenas com interferência na PF, mas com pretensões presidenciais e uma atitude de distanciamento do ex Juiz com relação à decisão do Presidente do STF. De público, Moro não disse nada, ainda durou no cargo até abril de 2020, mas não ganhou o COAF como queria. O Presidente precisava antes de mais nada cuidar do filho e tirar o assunto da mídia, e assim o COAF virou UIF e foi parar no Banco Central.

A vinculação do COAF ao Banco Central (decidida pelo então Presidente da República na Medida Provisória 893 de 19/8/2019) foi uma esquisitice administrativa. Como explicou à época o ex Ministro da Fazendo Mailson da Nóbrega, um “arranjo estranho e sem precedentes no serviço público federal” (“A impensada transferência do COAF”, O Estado de S.Paulo 07/09/2019). Segundo Mailson da Nóbrega, “optou-se por uma medida radical e extravagante, que pode ter consequências negativas”. O economista e funcionário público exemplar estava preocupado com a eficiência e racionalidade da gestão e o impacto sobre atividades econômicas, sobretudo as do Banco Central, que devia se concentrar no combate à inflação. E assim defendeu que o Congresso não aprovasse a estranha MP. Se desvios de conduta do COAF acaso tivessem ocorrido, que fossem corrigidos.

Argumentou em vão, pois a MP foi transformada em lei quatro meses depois. Prevaleceram no Congresso os interesses dos que não têm grande empenho em coibir transações internacionais ilícitas. O Congresso aprovou a transferência do COAF para o BC, nos termos da Lei 13.974 de 7 de janeiro de 2020. Só rejeitou a mudança do nome para o genérico UIF, manteve COAF-Conselho de Controle de Atividades Financeiras.  Reduziu para 12 o número de membros do Conselho. O Presidente do COAF e os conselheiros passariam a ser nomeados pelo Presidente do BC. O sigilo seria reforçado: conselheiros e funcionários do quadro técnico eram expressamente proibidos de manifestar nos meios de comunicação opinião sobre processo pendente de julgamento. Servidor que fornecesse ou divulgasse informação a pessoas sem autorização legal ficava sujeito a pena de reclusão de um a quatro anos e multa. E fez-se silêncio sobre o COAF, por três anos.

E agora? O COAF voltou ao Ministério da Fazenda, de onde nunca deveria ter saído. O Ministro da Fazenda nomeará o Presidente e os membros do Conselho. A preservação do sigilo foi mais uma vez reforçada, prevendo-se explicitamente retificação de dados incorretos e que eventual compartilhamento se realize “por intermédio de comunicação formal, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração de eventuais desvios cometidos em seus procedimentos internos”. E mais sobre segurança da informação contra uso indevido, quase juras de que não haverá mais vazamento. (Medida Provisória 1.158 de 12 de janeiro de 2023)

 Mas continuará o COAF tolhido em suas funções, exatamente as funções para o qual foi criado? Ou o COAF tem agora todos os artigos de lei necessários para que cumpra sua parte no combate à corrupção? É verdade que a ordem mundial do pós-guerra está quebrada e precisa ser renegociada, mas países ainda são julgados segundo o cumprimento de acordos internacionais, como os que existem para combater a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo.