O Velho e o Tempo - autor desconhecdido

O Velho e o Tempo – autor desconhecdido

 

Numa de suas inesquecíveis crônicas, o jornalista e pensador francês Alain (1868–1951) faz uma pergunta que muitos de nós poderíamos fazer, guardadas as diferenças de contexto. Referindo-se a uma nova locomotiva que abreviava em “um quarto de hora” a viagem de Paris a Le Havre, maravilha tecnológica da época, início do século 20, Alain questiona-se: “E que farão eles, os felizes viajantes, desse quarto de hora comprado tão caro?”.

Como costuma fazer, Alain inspira-se no cotidiano para chegar a uma reflexão que nos exige, por assim dizer, pegar um trem metafísico. O que farão os usuários com esse ganho de tempo? Com efeito, a época em que ele escreve acelera, como nunca em toda a História, o próprio tempo: automóvel, telégrafo, dirigíveis, trens, sem falar nos recentes encantos da eletricidade; tudo deixa pra trás o que é pacato e vagaroso. Há uma espécie de conquista do tempo, o que, “il va sans dire”, prossegue em nossa época, mas prossegue talvez com menor espanto do que nos anos em que Alain escreveu seu texto. 

O mestre francês nos diz que se compra, nada barato, o próprio tempo. No caso, são apenas quinze minutos, o que é pouquíssimo em termos de hoje. Proust, contemporâneo de Alain, anota mais radicalmente: “Sai-se quando se devia chegar”. A pressa perturba os espíritos. 

A pergunta de Alain prossegue como uma provocação. Mas o que se fará com esse tempo conquistado às custas de um rico pagamento? Alain é irônico: fala que os viajantes são “felizes” (“les heureux voyageurs”), provavelmente porque podem se dar ao luxo de comprar tempo, como se alongassem, abreviando a viagem, um período livre para desfrutar cada um à sua maneira. Invejável situação, quando comparada ao tempo “normal”, prosaicamente ao alcance de todos. A pergunta de Alain guarda uma certa teleologia, um fim de utilidade presumível: o que farão com isso, com esse ganho? Imagina-se, pelo anteposto adjetivo “felizes”, que farão algo de bom, de prazeroso, talvez de útil. No fundo, é claro, Alain não acredita nessa felicidade, pois supõe, não sem razão, que os viajantes “do tempo” nada farão à altura daqueles caros quinze minutos que a tecnologia estava proporcionando.

A questão levantada por Alain é moral porque alude a um comportamento. Os homens, em sua maioria, continuarão a desperdiçar o tempo. Muita gente que reclama da falta de tempo é a mesma gente que, uma vez obtendo tempo, só faz perdê-lo, ou seja, que, com mais tempo, faz as mesmas coisas, desperdiçando o mais precioso dos bens. Ir “em busca do tempo perdido” (sem qualquer trocadilho com o livro de Proust) tornou-se um lugar-comum. Enfim, ao ganharem mais tempo, as pessoas não ganham nada além do que já possuem e do que já são. No mundo do trabalho, ouvimos os queixumes dos eternamente “sem tempo”, desejosos de tempo livre. Mas o que fazem essas pessoas quando ganham o desejado tempo livre? Nada de mais. O que farão não com “quinze minutos”, porém com dias inteiros?…

Os que têm tempo geralmente o desperdiçam. A sabedoria popular ensina que, se você quer ver um trabalho feito no prazo, entregue-o a quem já está ocupado, e até muito ocupado, e não a alguém desocupado, presumivelmente cheio de tempo… É o que costumava falar meu saudoso professor de História no Colégio de Aplicação da UFPE, o médico e escritor Rubem Franca, que, aliás, tinha, como alguns ainda se recordam, “Os lusíadas” inteiro em sua memória privilegiada. Ele próprio, ressalte-se, era um exemplo de excelente usuário do tempo, sempre atento a múltiplas obrigações e compromissos. Ao contrário dos “felizes viajantes” com que Alain se depara, Rubem Franca era alguém que sabia o que fazer com o tempo, sem precisar comprá-lo a peso de ouro, feliz apenas de se organizar para usar seus múltiplos talentos. Sua vida de médico, pesquisador, professor e pai de família é um exemplo ilustre de nosso tempo na província pernambucana.

Voltando a Alain, é de notarmos que sua ironia vai além e nos brada: por que não perder os quinze minutos no próprio vagão? Essa é boa!!! Estaríamos bem e, apreciando a paisagem pela janela, curtiríamos, diz ele, um “maravilhoso álbum de geografia”. De resto, argumenta, quem não perde quinze minutos por dia “a sonhar ou a jogar cartas”?

O pensador francês ainda nos provoca: “Onde está o lucro? Para quem é o lucro?” Eis o essencial quando encaramos a questão do tempo, o que se agrava ao sabê-lo evidentemente irreversível. Anos depois, o psicanalista Erich Fromm (autor, durante um período, bem conhecido dos brasileiros) faria uma reflexão semelhante à de Alain escrevendo: “O homem moderno pensa perder algo — tempo — quando não faz as coisas depressa; entretanto não sabe o que fazer com o tempo que ganha, a não ser matá-lo”. Enfim, só posso concluir com o conhecido aforisma machadiano: “Matamos o tempo; o tempo nos enterra”. Só nas ampulhetas, a areia do tempo não faz pó.