Neste artigo, intento não mais que uma breve apresentação de Johann Georg Hamann (1730–1788), o obscuro pensador alemão de quem nos separam quase três séculos. Seguirei, ainda que claudicante, os passos, de resto sempre firmes e seguros, de outro pensador, este, sim, mais conhecido: o historiador das ideias britânico Isaiah Berlin. Serão nossas fontes os seus ensaios “O Contra-Iluminismo” e “O Mago do Norte: J.G. Hamann e a origem do irracionalismo moderno”.
Não deixa de ser intelectualmente estimulante conhecer um pouco de Hamann num tempo em que o irracionalismo dá as caras através de uma extrema direita tão obscurantista quanto globalmente articulada. Muitas das ideias hamaniannas estão vivas, senão vivíssimas, propiciando abertamente a rejeição aos princípios iluministas que impulsionaram o progresso e o primado da razão. Hamann madrugou em desferir um golpe radical contra o Iluminismo. Berlin nos diz que ele “[…] é o primeiro na linha dos pensadores que acusam o racionalismo e o cientificismo de usar a análise para distorcer a realidade […]”. Embora iluminista na juventude, o chamado “Mago do Norte” teve uma infância e uma formação pietistas. Ora, o pietismo alemão foi um ramo do luteranismo caracterizado por grande devoção pessoal, introspecção, abnegação de si mesmo, relação pessoal com Deus, puritanismo, pessimismo e um imenso conservadorismo de valores em geral. Berlin, em outra obra (“As raízes do Romantismo”), não deixaria de estudar o quanto o pietismo foi decisivo para a eclosão do Romantismo europeu.
A certa altura da vida, numa volta às suas origens pietistas, Hamann deixa o Iluminismo para trás e se torna um pioneiro do antirracionalismo, numa marcha contra seu próprio tempo. Berlin anota que “Nenhum homem esteve em uma oposição mais consciente à sua época, com um fanatismo que, com frequência, se convertia em perversidade”, o que o levou a ser um dos “[…] poucos críticos da modernidade totalmente original”. Ocorre que qualquer estudioso de Hamann estará longe de um pensador claro e disciplinado. Pelo contrário: como se espelhasse a própria doutrina, seus textos são um emaranhado de antinomias, de fragmentos, de trocadilhos, de metáforas obscuras, formando um estilo arrevesado, repleto de digressões, de inacabamentos, embora, como salienta Berlin, tudo isso não evite uma profunda impressão de unidade.
“Incapaz de respirar no brilhante mundo da razão”, Hamann protestava contra o racionalismo dos apologetas e dos exegetas de seu tempo. Defendia que todo conhecimento repousa na fé e que “Deus é um poeta, não um geômetra” e nos fala diretamente através da natureza. Argumentava que a espontaneidade é tudo, que as abstrações são verdadeiros ilusionismos (daí tantas brigas suas com Kant, de quem foi protegido, imaginem!). O que vale para Hamann é a experiência direta da realidade, a visão intuitiva, nada, pois, de generalidades, abstrações e sistemas. Para ele, o Iluminismo matava o que havia de mais vivo nos seres humanos. Seu próprio pietismo nada tinha de ortodoxo, tal a liberdade que concedia à subjetividade. Do ponto de vista sociológico, se podemos falar assim, privilegiava os valores tradicionais das pequenas comunidades. A mística de Hamann não dispensava o gozo sensual da matéria. A arte é paixão e está vinculada à autoexpressão de cada artista. O que ele amava era estar longe de conceitos que podem ser tomados por realidade, pois, como sintetiza Berlin, “[…] O verdadeiro conhecimento [para Hamann] é a percepção direta das entidades individuais, e os conceitos nunca são, por mais específicos que possam ser, inteiramente adequados à plenitude da experiência individual”.
Não por acaso, Hamann, ainda que obscurecido por discípulos ilustres, será um dos principais mentores do movimento Sturm und Drang, que fez eclodir de fato o Romantismo na Alemanha. Por falar em “discípulos”, o Mago do Norte, que se considerava um Sócrates moderno, pode contar, entre eles, gente do peso intelectual de Herder, Friedrich Schlegel, Schiller, Kierkegaard…
Eis o homem! Com propriedade, Berlin afirma de Hamann: “É uma figura obscura, mas as figuras obscuras, por vezes, criam grandes consequências (Hitler também foi, afinal, um homem obscuro durante parte de sua vida)”. Não sem alguma melancolia, o ensaísta britânico resume que “Hamann pertence a essa pequena classe de pessoas agudamente sensíveis que possuem o dom, ou a desgraça, de adivinhar os contornos do futuro, tanto para recebê-lo com parabéns como para a ele resistir — que foi o que ele fez — com medo e hostilidade”. Para entender politicamente nosso tempo, no que ele espelha a sombra de Hamann, talvez devamos guardar de Berlin estas duas últimas palavras: “medo” e “hostilidade”. E de minha parte acrescentaria: “fanatismo” e “intolerância”, todas primas em primeiro grau.
O discurso de privilegiar valores tradicionais se servindo do Estado e a manutenção da exploração da classe trabalhadora é a Elite do Atraso bem representada por Abílio Diniz que “tenho medo de uma reforma tributária Robin Good”.
Robin Hood