Ângela Diniz

Ângela Diniz

 

O Supremo Tribunal Federal acabou, recentemente, com um vergonhoso “penduricalho jurídico” denominado “legítima defesa da honra”.  Foi sob o manto dessa tese que criminosos confessos, machistas furiosos e maridos inconformados assassinaram friamente namoradas, esposas e amantes – conscientes de que seriam absolvidos pela Justiça. Bastava, para isso, contratar um bom advogado. Como fez Doca Street, que no penúltimo dia do ano de 1976 assassinou a tiros Ângela Diniz, a “Pantera Mineira”, uma mulher lindíssima que vivia perigosamente, mas que não  merecia o triste fim que o destino lhe reservou. Esse crime ganhou as manchetes dos grandes jornais do país. E Doca, no primeiro julgamento, sob a tese de “legítima defesa da honra”, foi praticamente absolvido. Recebeu a pena de dois anos de prisão, com sursis imediato, o que lhe permitiu sair do julgamento direto para comemorar a liberdade.  O seu advogado foi o famoso criminalista Evandro Lins e Silva, que anos depois, já como ministro do Supremo, estaria no Recife, participando, ao lado de outros intelectuais, de uma reunião da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. No Recife,  recebeu palmas e louvores, merecidos ou não.

Doca Street  enfrentou  novo julgamento, quando, aí sim, foi condenado a uma pena de  15 anos de prisão, cumprindo parte dela em regime semiaberto.

Um parêntese: esse novo julgamento de Doca Street foi fruto do “Movimento Feminista”, que apenas engatinhava, numa sociedade machista e conservadora, que via a mulher como um ente inferior.

Na imprensa, o movimento era ridicularizado. Millor Fernandes, o grande humorista que publicou livros, criou peças teatrais, trabalhou em grandes jornais e revistas, era o primeiro a fazer piadas sarcásticas com as primeiras feministas. Escreveu ele no Jornal  O Pasquim: – “Para mim, o movimento mais importante das mulheres ainda é o movimento dos quadris…” Ou: “Eu apoio totalmente o movimento das feministas: elas gostam de mulheres. Eu também gosto”… Essas piadas menores, machistas, discriminatórias, recebiam grande aceitação na sociedade da época. Já Nelson Rodrigues, conservador e defensor do Golpe de 1964, também tentava ridicularizar as mulheres. Nelson falava das “freiras de minissaia”, pois  algumas religiosas tinham a coragem de sair às ruas, em defesa da pregação de Dom Helder Câmara, enfrentando a violência da polícia  e os tanques do Exército.

Há quem considere esse protesto contra a absolvição de Doca Street, no primeiro julgamento, como o marco inicial do movimento feminista no Brasil. E certamente é.

Doca Street, ou Raul Fernando do Amaral Street, morreu em 2020, de ataque Cardíaco, aos 86 anos, em São Paulo. Antes de morrer, ainda teve tempo de publicar um livro com sua versão do crime, onde, no final, cometeu a ousadia de pedir desculpas à sua vítima. Escreveu ele, depois de algumas baboseiras: “De certa maneira era pura, não se escondia atrás de nada. Nunca a vi querer prejudicar ninguém. Se o fez, foi a si mesma. Por querer se libertar, perdeu seus entes mais queridos. Não a mereci, porque não soube compreendê-la, não estava à altura dela. Ela deve ser lembrada com respeito. Desculpe-me, Ângela”. Um respeito que ele não teve.

A história de Ângela Diniz  é bem um retrato daqueles anos escuros do regime  militar, de puritanismo canhestro e moralidade falsa. Era a época da censura aos meios de comunicação; de apologia à “Tradicional Família Mineira”, jocosamente tratada na imprensa, quando os censores não viam. Ângela Diniz nasceu de família rica em Belo Horizonte, casou com um homem do meio social que frequentou – mas se sentia oprimida pelas tantas limitações que a vida provinciana lhe impunha. E o casamento fracassou. Já separada, dividia seu tempo ocioso entre Belo Horizonte e o Rio de Janeiro, com vida noturna mais intensa, belas praias, novos amigos.

Foi aí que conheceu Doca Street, tido como playboy, embora fosse apenas um paulista que tinha alguns amigos endinheirados, e que as circunstâncias colocaram  no caminho de Ângela. Essa, por sua vez, desquitada e muito  bonita, foi apresentada, numa ocasião qualquer, ao jornalista Ibrahym Sued, o colunista mais famoso do país naquela época. Imediatamente, Angela Diniz apareceu na coluna do jornalista como  “A Pantera Mineira”. E mais tarde, os dois teriam um relacionamento mais íntimo.

O ciúme de Doca  com essa relação também gerou brigas entre os dois – até o desfecho fatal, quando  ele, bêbado e drogado, numa noite de lua na Praia dos Ossos, município de Búzios, no Litoral Fluminense, disparou seu revólver três vezes contra o rosto de Ângela Diniz.

Após o crime, ainda sob o efeito do  álcool e das drogas, Doca Street conseguiu pegar o carro e dirigir até São Paulo, onde foi se abrigar em casa de amigos. E lá ele concedeu sua primeira entrevista após o crime.  Negociou essa entrevista com  o jornalista Salomão Schwartsman, diretor da Sucursal da Editora Bloch em São Paulo, que publicava, entre outras, a Revista Manchete. A entrevista foi fria e, como se esperava, o assassino tentava se colocar como vítima. Para concluir: 

Doca se apresentou à Justiça, foi a julgamento, o juiz e os jurados acataram a tese de  “Legítima Defesa da Honra”;

Ângela Diniz foi apresentada como “a mulher fatal”; 

Doca deixou o Fórum livre e faceiro. O Movimento Feminista não aceitou aquela aberração jurídica. Aquelas bravas mulheres iniciaram um movimento  de  protesto que foi além da cena do crime.

Destacavam  que  “Quem Ama não Mata”. Esse “bordão” virou a grande bandeira do movimento. O  hino da justa indignação.

O Ministério Público apelou para instâncias superiores e conseguiu um novo julgamento; Doca foi condenado a uma pena de 15 anos. Quando deixou a prisão, deixou também a vida boêmia e turbulenta de sua juventude. Viveu seus últimos anos quase em silêncio, trabalhando em empresas de amigos dos velhos tempos – não sei se reconciliado com a família. Publicou um livro de memórias, confessou a culpa, e não mais se ouviu falar de Raul Fernando do Amaral Street. A partir de agora, não se ouvirá  qualquer advogado falar mais de “legítima defesa da honra”.