“Uma mulher tem que ter qualquer coisa além de beleza. Qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudade. Uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher”.

Sim, isso é Vinícius de Moraes, mas, prometo, é o primeiro e o último homem na arte que vocês vão ler hoje.

Em vez disso, vamos focar nas mulheres que muitas vezes são transformadas em musas, mas quase nunca são lembradas como autoras, como artistas, como a mente pensante por trás da arte. Aqui está uma pequena lista de mulheres autoras, artistas e pesquisadoras da arte que vocês vão ler o nome no dia de hoje: Aphra Behn, Jane Austen, Anais Nim, Virginia Woolf, Clarice Lispector, Abigail de Andrade, Nan Goldin, Joan Semmel, Susan Sontag, Lilian Nochlin, Tereza Costa Rêgo, Ana Paula Simioni.

O que me inspirou para escrever esse texto foi o livro Um Teto Todo Seu da Virginia Woolf. No ensaio, escrito em 1928, ela defende que, para ser artista, a mulher precisa de dinheiro e de UM teto todo seu. Ela passa o livro todo mostrando as relações de disparidade das mulheres e dos homens no caminho para ser artista.

O livro é formado por vários questionamentos, alguns deles sem resposta, todos relatando a realidade do ser mulher no início do século XX e nos anos que antecederam. Ela questionava na busca de revelar as chaves da falácia que destinou a razão da mulher nos infernos na servidão, da irracionalidade. Alguns desses questionamentos foram:

  • Por que os homens bebiam vinho e as mulheres água?

Que efeito tinha a pobreza da mulher na ficção? Por que as mulheressão pobres?

  • Quais as condições necessárias para criação de obras de arte?
  • Quantos livros são escritos por mulheres? Quantos livros são escritos por homens?
  • Por que homens escrevem tanto sobre mulheres? E mulheres nunca escrevem sobre mulheres?
  • Como poderia uma mulher criar se ela sempre trabalhou não remunerado?

Para responder tais perguntas, ela fez uma viagem por vários locais, indo de igrejas até bibliotecas até o Museu Nacional. Com essa pesquisa, ela evidenciou o apagar da mulher na arte e na história. Nesse momento, sua história se intercala com o seu ensaio, isso porque ela relembra de tudo que lhe foi negado: acesso a uma universidade de qualidade — essa era destinada apenas aos homens. A cada geração que passava as mulheres conquistavam algum poder que na realidade tratava-se apenas de um direito humano básico, mas que para os homens era excesso.

Nos relatos das pesquisas de Woolf, as mulheres encontravam-se, sempre, na condição de objeto. O que hoje, em pleno século XXI parece ser uma informação conhecida, era novidade; ela chegou a essa conclusão em uma época em que a informação e formação oferecida à mulher era considerada ouro. Na década de 1920, há 100 anos, os homens juravam que os problemas sexistas haviam acabado porque a mulher tinha direito à educação e ao voto.

Entretanto, desde aquela época Woolf sabia que não era verdade, e estava certa: quantas ondas de feminismo já não existiram desde então? A ideia de equidade é impossível quando observamos uma sociedade mundial onde muitas mulheres continuam a sofrer o peso do casamento arranjado ainda criança. A visão interseccional dos problemas mundiais femininos é importante para entender que o tratamento nunca vai ser igual.

Na arte, por mais que geniais, existe uma diferença clara em como as mulheres são tratadas e, quanto mais fama essa mulher artista vai conquistar com sua arte, mais questionada ela será. O tema de fato é sensível e complexo, porque não bastavam as mil perguntas que Virginia fazia em seu ensaio, eu agora procurava relacionar essas perguntas cem anos depois e entender alguma coisa, mas me vi tão perdida no meio de tantos questionamentos quanto Woolf.

De fato, tentar falar sobre a mulher artista é complexo.

Então, para facilitar minha vida e as suas, vou dividir essa crônica transformada em ensaio pelo seu tamanho em duas partes. Vamos chamá-las de “anonimato” e “estrelato”.

O anonimato

Para falar do artista que se conjecturou como anônimo, devemos pensar, antes de mais nada, das condições que levaram a essa situação: trata-se de uma questão de poder. Por muitos anos a classe masculina usou de diversas desculpas para demonstrar as razões pelas quais as mulheres não pertenciam na sociedade: “mulher não tem absolutamente caráter nenhum” e “as mulheres são extremadas”, e indo até razões como “a quantidade de pelos no corpo”.

Eles faziam isso não por considerar as mulheres menores, apontou Woolf, mas para que, na visão do espelho, eles pudessem se ver duas vezes maiores. Esses homens que escreviam de tal modo sobre a mulher faziam-no dessa forma por estarem preocupados com sua própria superioridade. Quando apontavam e gritavam “feminista!” significava muito mais que apenas um “brado da vaidade ferida”: era o protesto contra a violação do seu poder de acreditar em si mesmo: “pois não fôssemos inferiores, eles deixariam de engrandecer-se”. E eles faziam isso de diversas formas, excluindo as mulheres dos ambientes escolares aos de criação de leis, entre elas “era um direito legítimo do marido surrar a esposa”.

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The Ballad of Sexual Dependecy — Nan Goldin (1979)

Mas, a arte é necessidade da alma. Algumas mulheres tornaram-se transgressoras para não serem condenadas à uma sobrevida. Mas, elas eram condenadas de outras formas, a fogueira era o seu final de vida, a bruxa era uma artista perdida.

Porém, não faz sentido. Quando pensamos nas grandes mulheres da história, como Cleópatra, a rainha Vitória, ou na literatura em personagens como Anna Karenina, ou em poesias como “She walks in beauty” do Lord Byron. As mulheres brilhavam dentro dos livros em versões maquiadas delas mesmas composta pelos olhares masculinos. Criadas na ficção como algo extraordinário e, na vida real, trancafiadas, estupradas, surradas.

Por não poderem existir como artistas como a alma implorou, Woolf observou que muitas dessas artistas assumiram o manto da loucura e outras aceitaram assinar como um autor: o “Anônimo”.

Então, questiono: quantas obras sem nome não foram, na verdade, trabalho de mulheres? Infelizmente, não temos como saber. Mas sabemos que nem sempre o anonimato era a escolha dessas mulheres. Era uma imposição.

Esse questionamento iniciou, apenas, na década de 1970, impulsionado pela segunda onda feminista nos Estados Unidos da América, quando a pesquisadora Linda Nochlin questionou: “por que não existiu nenhuma grande artista mulher?”. Ela identificou as práticas excludentes de formação, fato que a própria Virginia Woolf encontrou na sua vida e relatou no ensaio escrito em 1928.

No Brasil, temos a pesquisadora Ana Paula Simoni, que fez pesquisas durante toda sua vida com o objetivo de recuperar a memória das artistas brasileiras lançadas ao anonimato. O que ela achou entristece a qualquer um que ame, nem que seja minimamente, a arte, porque existe um processo de silêncio da história jogado por cima das artistas.

Quando Woolf pesquisou sobre mulheres que escreviam sobre mulheres e para mulheres, só encontrava escritos e artes de outros homens. Não é que não exista, é que não existe o interesse das instituições de adquirir o trabalho de mulheres e eles se encontram na mão de particulares que guardam para si um grande pedaço da história da arte.

Se os textos de Woolf, Nochlin e Simioni eram preenchidos de perguntas sem respostas, comecei eu a criar mais questionamentos. Para todo grande artista e acadêmico da arte que eu admiro, anonimamente, escondida em alguma biblioteca, existe uma mulher que eu iria admirar ainda mais. Certo? Acho que por isso iniciei o texto mostrando uma lista de artistas e acadêmicas mulheres que gostaria de falar sobre: elas perpassaram o anonimato e são grandes exemplos em diversas esferas da arte e da academia. Infelizmente, quando estavam vivas, tiveram suas flores deixadas para morrer de sede.

Falo de flores porque, já que homens gostam de imaginar as mulheres sobre as lentes de fragilidade, vamos imaginá-las como flores. Quando não regam esse talento — coisa que eles fazem de propósito — somos levadas à amargura. Até que alguém nos rega e eles esquecem que podemos ser plantas carnívoras, a famosa “venus flytrap

— gosto mais do nome em inglês, Vênus remete que a planta é uma “ela”, gosto disso, acho poético. A primeira pessoa a regar o terreno fértil da criatividade feminina que existe registro foi Aphra Behn.

Toda mulher artista é descendente de Behn. Toda mulher artista é descendente de outra mulher artista que viveu situações e rompeu barreiras para que elas pudessem ter liberdade de criar e ganhar com seu trabalho, para ter um teto todo seu.

Infelizmente, a habilidade e liberdade para criação e ser quem é está longe de ser total. Tomamos como exemplo a própria Virginia Woolf. Isso porque à medida que eu lia o livro, entre meus muitos questionamentos, um deles foi sobre quem era a Virginia Woolf, para além do que eu conhecia. Nunca tinha pesquisado a fundo sua obra. Mas, claro, li alguns livros (Sra. Dalloway e Uma Casa Assombrada).

Acabei por descobrir que seu destino foi parecido com o que ela profetizou para mulheres artistas que não podem exercer sua arte. Porque, apesar da condição financeira favorável e da ajuda sempre constante do seu marido, a sua clara noção da sociedade, da aristocracia londrina, o mundo da arte tão fácil em apagar mulheres de sua memória, vitima da sociedade que vivia e das condições que mulher possuía, abordou as manifestações de uma realidade que a levou a morte: fez do seu final de vida uma elegia, atirando-se no rio Ouse após encher seus bolsos com pedras pesadas. Por isso, comecei o texto citando Vinicius de Moraes, foi a tristeza de se saber mulher na sociedade em que vivia que a levou ao ponto final. Nem a arte pôde salvá-la, mas nem sempre é assim.

Indo no caminho oposto, temos o trabalho de Nan Goldin. Retratada um pouco acima em um auto retrato brutal, ela é uma fotógrafa americana conhecida por seu trabalho artístico sobre corpos LGBTQIA+, momentos de intimidade, a crise do HIV e a epidemia de opioides.

Sua arte veio como resposta à eterna procura de um lar. Filha de pais desajustados e uma irmã que suicidou-se ainda adolescente, Goldin desde os 11 anos se envolvia com homens mais velhos que a maltratavam. Em seu livro, The Ballad of sexual dependecy (A balada da dependência sexual), Nan Goldin cria um diário de 228 imagens da sua procura por um teto todo seu.

Quando achei o livro da Goldin, tornei-me obcecada com sua obra. Precisava consumir o máximo de informação sobre ela, e ainda bem que o fiz. No excelente documentário, All the beauty and the bloodshed, observei a luta social protagonizada pela fotógrafa que fez da sua arte um grito democrático e utilizou dela para protestar: patrocinou a queda do império dentro dos museus mais famosos mundiamentes, como o MET e o Louvre, da família Sackler. Responsável pela propagação inconsequente de narcóticos que tiraram vidas, principalmente na década de 1980. Ela fez isso utilizando da arte.

Infelizmente, o documentário nunca foi exibido no Brasil.

(..continua)