Índia foi o foco da atenção mundial nos últimos dias de agosto. Quando a missão Chandrayaan-3 colocou os dois robôs, Vikram e Pragyan, no polo sul da Lua, a reunião dos BRICS estava no meio, e foi na África do Sul que o Primeiro Ministro Narendra Modi assistiu ao lançamento.

ISRO (Indian Space Research Organization) é popular na Índia, já era bem antes de a Índia se tornar o 4º país a pousar na Lua, e não perdeu popularidade nem quando em 2019 falhou o pouso de Chandrayaan-2. Naquele ano Modi estava na ISRO e consta que chorou com seus jovens engenheiros e os incentivou a persistir. Este ano Modi se reuniu em videoconferência com todo o pessoal da ISRO para acompanhar o foguete e a aterrissagem, e fez de Joanesburgo um comunicado com seu tom costumeiro de exaltação nacional: “Este é um momento da capacidade de 140 crores* de corações pulsando e da confiança da nova energia da Índia.” Depois de usar termos de astrologia védica, elogiou a dedicação e talento dos cientistas e declarou que a missão da Índia à Lua é “humano-cêntrica” e que, portanto, “este sucesso pertence a toda humanidade”. Um aceno à paz, ao menos na aparência…

Parece que a população inteira da Índia acompanhou o lançamento, pois quando o foguete estava próximo da chegada prevista as crianças foram mobilizadas nas escolas diante das telas para rezar pelo êxito dos cientistas, populares nas ruas pularam e gritaram de alegria no momento do pouso junto com as centenas de engenheiros da ISRO reunidos diante de um telão em Bengaluru, vídeos dos indianos em comemoração se espalharam por “X” no país que se diz “Digital Índia” e campeão mundial de digitalização com internet chegando aos rincões mais longínquos.

Depois da festa, o mundo começou a analisar a nova corrida espacial. Aí o que mais atraiu atenção já não foram os robôs lá na Lua mandando fotos do que parece gelo, e sim o “foguete frugal”. O custo do lançamento é o que está causando espanto. Os estimados 75 ou 80 milhões de dólares são apenas uma fração do que custa um lançamento da NASA e menos de metade do que custou a produção do filme “Interstellar”, custo algo menor até que o da China, e indicariam a competitividade da Índia no mercado dos foguetes e plataformas de lançamento de satélites. https://www.ft.com/content/7e997c70-5797-482e-a1a9-177dd34b8e65 Mas vale recordar aos futuros concorrentes que o programa espacial da Índia existe há 54 anos.

A Índia continua em foco, agora pela 18ª Cúpula de Chefes de Estado e de Governo do G20. Detém atualmente a Presidência do G20, que passará ao Brasil 1º de dezembro próximo. Hospedará em Nova Delhi este fim de semana, dias 9 e 10 de setembro, os 20 líderes do grupo e as organizações internacionais e regionais de costume. Dispondo de um direito da Presidência do grupo, convidou mais nove países, além de três organizações internacionais, o ADB (Asian Development Bank) e as duas que foram lançadas recentemente pela Índia, a ISA (International Solar Alliance) e o CDRI (Coalition for Disaster Resilient Infrastructure).

Apenas Egito e EAU (Emirados Árabes Unidos) estavam também na lista dos que farão parte dos BRICS. Listados oficialmente na ordem alfabética dos seus nomes ingleses, eis os nove convidados da Índia: Bangladesh, Egito, Maurícia, Países Baixos, Nigéria, Omã, Singapura, Espanha, EAU. https://www.g20.org/pt/g20-india-2023/new-delhi-summit/ De geopolítica não sei o suficiente para conjeturas sobre os critérios da formação dessa lista, mas os discursos de Modi e sua insistente promoção do etnonacionalismo hindu sugerem o critério para convidar Maurícia, um país-ilha de pouco mais de um milhão de habitantes, o único país da África em que o hinduísmo é a religião predominante.

Desde que assumiu a Presidência do grupo, Modi anunciou em mais de uma ocasião que apresentaria as experiências da Índia como modelo para outros países, e quer marcar nesta 18ª Cúpula a crescente importância da Índia. Foi o que proclamou de novo há menos de um mês, nas comemorações do 77º Dia da Independência. A Índia, segundo está no PIB (Press Information Bureau) do Primeiro Ministro, propôs o conceito de “Um Mundo, Uma Família, Um Futuro” e estaria trabalhando nessa direção para a reunião de Nova Delhi. Além disso, estaria “mostrando o caminho” para enfrentar a crise climática com sua missão “Estilo de Vida para o Ambiente”.

Mesmo que seja possível ignorar atritos que existem entre Índia e China e concentrar nos interesses multilaterais de ambos, dentro do grupo as diferenças de opinião sobre a guerra na Ucrânia parecem incontornáveis. No discurso do 77º Dia da Independência, Modi afirmou, ipsis litteris: “A Índia torna-se a voz do Sul Global”. Evidentemente para consumo interno. Pois, poucas semanas depois, o seu xerpa nos preparativos da Cúpula, Amitabh Kant, admitiu a jornalistas que mesmo o Sul Global tem divergências, até a formulação que se construiu na 17ª Cúpula em Bali, deplorando a “agressão” russa, já não era mais aceita.

Mesmo que a Índia, idealmente, almeje ser nova potência em um mundo multipolar, ainda não está claro como será seu comportamento frente às reiteradas tentativas de Washington para estabelecer um alinhamento Estados Unidos-Índia e juntar a Índia ao seu programa e estratégia de contenção da China. Por enquanto a Índia tem escapado de tomar partido nessa nova “guerra fria”, ainda que obviamente cuide de seu interesse em receber tecnologia avançada dos Estados Unidos. Apesar das disputas de fronteira com a China no Himalaia e novas escaramuças militares há dois anos, Nova Delhi continua sendo parte da Organização para a Cooperação de Xangai (SCO), fundada por Beijing em 1996. https://www.foreignaffairs.com/india/markey-modi-biden-united-states (São membros da SCO a China, Índia, Irã, Cazaquistão, Quirguistão, Paquistão, Rússia, Tajiquistão e Uzbequistão.) Fato é que este mês, uma semana antes do início da Cúpula do G20, Xi Jinping informou, sem explicação pública oficial, que estará ausente, irá seu segundo, Premier Li Qiang. Provocou vasta especulação sobre motivos.

De qualquer modo, um comunicado de consenso do G20, pretendido pela Índia, têm chances mínimas. Aparecerá algum gênio da famosa “ofuscação linguística” imprescindível aos consensos? Circula até uma previsão de que não haverá comunicado, tantas as omissões necessárias. Quem sabe sobra alguma fala sobre proteção comum ao meio ambiente no planeta Terra. 

Todo ano desde que tomou posse há quase 10 anos, Modi faz um discurso das muralhas de Red Fort no qual comemora o Dia da Independência da Índia, 15 de agosto de 1947. No 77º Dia da Independência, este ano, falou por 90 minutos das glórias da Índia em seu governo, e em oratória poderosa e quase messiânica, dirigiu-se mais de 30 vezes a “My dear family members”, a defender para ele e seu partido BJP mais cinco anos, apresentados como a oportunidade única para transformar a Índia em país desenvolvido. Traduzo uma frase em que ele se refere a si mesmo em terceira pessoa, lá pelo meio da longa fala: “… eu garanto a vocês que nos próximos anos, a garantia de Modi é que o país tomará seu lugar entre as três primeiras economias do mundo, definitivamente tomará lugar.” (“And I assure you that in the coming five years, Modi’s guarantee is that the country will take its place in the first three world economies, it will definitely take place.”) https://www.hindustantimes.com/india-news/narendra-modi-independence-day-speech-full-text-red-fort-101692065097378_html

Comparações entre Índia e China já se faz há tempos, intensificadas desde que a Índia passou a China em população, com oportunidade de aproveitar a transição demográfica, e agora depois do pouso na Lua. A economia indiana, que crescia a um ritmo que na ONU no século passado denominávamos “the Indian rate of growth”, isto é, uma taxa de aumento do PIB baixa, mas estável, acelerou seu ritmo de crescimento no século XXI. Em 2021 passou o PIB da Grã-Bretanha, e hoje a Índia é a 5ª maior economia do mundo (ainda que isso se deva também ao fato de que a economia britânica está andando de lado há uma década). Em 2022 a taxa de crescimento do PIB da Índia foi 7% e para este ano a previsão do FMI e do Banco Mundial é pelo menos 6%, das mais altas do mundo. Há outras comparações que se fazem: em 1990 Índia e China tinham economias de tamanho semelhante, hoje a China tem uma economia que é cinco vezes maior que a Índia. 

É verdade que o otimismo com a economia da Índia está no auge. Acertará Modi com sua garantia de que seus “queridos 140 crore de membros da família” terão um país desenvolvido e chegarão ao terceiro lugar? É cedo para garantir. Em todo caso o ceticismo se instala quando mudamos o foco para as condições de vida e a renda per capita. O PIB per capita dos indianos é menos de metade do PIB per capita dos brasileiros, respectivamente $7.100 e $15.000 (segundo as estimativas do Banco Mundial para 2022 em PPP, paridade de poder de compra). É um terço do PIB per capita da China, que é $18.000, segundo as mesmas estimativas. E 1/9 do americano, $64.700. (O Banco também publica estimativas em dólares correntes, e aí a Índia aparece como relativamente ainda mais pobre, US$2.390 de PIB per capita contra US$76.400 dos Estados Unidos, mas essas são distorcidas por flutuações das taxas de câmbio.)

As mortandades por fome (as “famines” estudadas por Amartya Sen) são coisas do passado na Índia, mas ainda há muita pobreza. A pobreza é maior no norte, e a desigualdade regional é tal que é visível a ausência de saneamento básico em alguns estados. Conflitos comunitários violentos de base religiosa reapareceram recentemente, como no estado de Manipur, onde a violência étnica desde maio deste ano deixou centenas de mortos, milhares de desabrigados, muitas aldeias incendiadas, dezenas de igrejas vandalizadas, e duas mulheres foram paradeadas nuas, a ponto de provocar manifestação de repúdio da União Europeia. Depois de Chandrayaan-3 chama mais atenção o florescimento de uma ciência de ponta enquanto permanecem milhões de analfabetos e a brutalidade da ignorância. E há ainda a analisar a maneira pela qual foi domesticada a imprensa local, as barreiras ao comércio exterior e relações com empresas e questões de governança que vieram à tona com as denúncias de fraude do grupo Adani. Qualquer tentativa de previsão teria que considerar também esse lado de sombra na nova confiança e afirmação da Índia. O progresso que chegou até o lado escuro da Lua ainda não chegou às áreas atrasadas da Índia. 

 

*  Crore é unidade de medida da Índia igual a 10 milhões.