20 de setembro de 2023
O livro chegou à minha mão, com bela dedicatória do autor para a amiga participante dos tempos gloriosos de delírio e rebeldia. Não resisti à leitura, que passou na frente de outras em andamento, e foi tão arrebatadora como o título que nomeia a parte I do romance de Sérgio C. Buarque, Geração D.
D de Delírio. Mas que também poderia ser de Devaneio, Desilusões, Devassidão. Delírio político com rebeldia comportamental de jovens, “que transformaram o mundo com seus sonhos, amores e amarguras”.
Trata-se do romance de um ex militante de movimento estudantil e partido político clandestino, ex preso político, ex exilado político no Chile e Alemanha, hoje, competente economista e editor chefe da “Revista Será?”; criação sua há pouco mais de 10 anos, e onde eu encontrei, no Recife, meu grupo de referência político nesses tumultuados anos de democracia que temos vivido no Brasil.
Já conhecia a incursão do autor na ficção, através de dois livros de contos, tendo eu escrito o prefácio de um deles. Mas nada que se compare a essa mais nova aventura de Sérgio, num ousado romance de 555 páginas. E que romance, meu senhor! Misturando, tal como no livro do seu personagem Alexandre (alter/ego?), mistério, amor, paixão, traição e política. E com duas tramas que prendem a atenção do leitor à maneira de romances policiais: os desdobramentos dramáticos do sequestro de um Ministro de Estado por militantes adeptos da luta armada; e a vida de uma militante desse mesmo agrupamento político em Cuba e Paris.
A trama do romance acompanha a trajetória dos personagens na militância e no exílio, passando pelo Rio de Janeiro, Recife, Santiago do Chile, Paris, Havana. A conexão desses lugares se faz através da vida desses personagens, na verdade, uma profusão deles, muitos apenas figurantes, fosse um filme.
A maneira como os personagens se encontram e desencontram desde a fase do arrebatamento juvenil, culmina com uma fase de maturidade (terceira parte do livro), com alguns reencontros surpreendentes. Essa trama é muito bem urdida pelo autor, fazendo da leitura desse romance, sobretudo para os da Geração D, uma aventura tão saborosa como deve ter sido escrevê-lo.
Ao longo do romance, o professor Sérgio C. Buarque, através de alguns personagens, afirma seus pontos de vista atuais sobre política, economia e sociedade. Palavras colocadas na boca do ministro liberal, do jornalista Alexandre, do poeta Maurício, da musa do livro, Renata. Tive o cuidado de anotar à parte, enquanto lia, as páginas em que vai se costurando uma quase aula paralela à trama novelesca. Recurso, de resto, comum a muitos romances.
Nada, ou quase nada, escapou à reflexão do autor sobre assuntos tão diversos como as opções da esquerda, a luta armada, trotskismo, stalinismo, neoliberalismo econômico, democracia. E até, corajosamente, temas tão femininos como o aborto e o assédio sexual. Os temas vão se esboçando principalmente nos diálogos, como o que ocorre entre Alexandre e Maurício no capítulo “Biografia poética”, em que este, tendo vivido experiências muito diversas após a prisão e quase morte nas salas de tortura, declara, na maturidade, que hoje faz a revolução através da poesia. “A revolução pelo despertar de emoções. Não suporto mais ler essas análises políticas ou discursos ideológicos da esquerda, nem acredito mais nessas ‘verdades’. Para mim, o conhecimento vem da revelação, não de leituras, análises e discussões teóricas ou estudos empíricos”.
As incursões em temas polêmicos enriquecem o livro. Porém, a meu juízo, seriam dispensáveis as aulas de economia e detalhes da vida acadêmica do professor da Unicamp, bem como o romance água com açúcar deste professor maduro com uma aluna jovem, que contrasta com a força das principais personagens femininas. A Colômbia não faria falta ao livro. Aliás, a meu juízo, faltou enxugar muitas passagens desnecessários, personagens que aparecem sem trazer nenhuma contribuição ao encadeamento da história. Enxuto, esse romance só iluminaria o valor da trama e dos personagens, sem a interrupção de pedras no caminho. Afinal, ficção não comporta explicações.
As visões mais instigantes em temas polêmicos são de mulheres como Renata e Alice. “Violência revolucionária é sempre violência”, pensa Renata. E mais: “O povo? O povo, Maurício, nem sabe que nós existimos. O povo está eufórico com emprego sobrando”. Ou ainda: “Nós incorporávamos a mesma opção pela pobreza e pela dor do cristianismo, materialistas formados no mito cristão”.
Renata é a protagonista principal do romance. Como pivô da trama, através dela se apresentam vários outros personagens. Ousadia suprema teria sido Sérgio escrever o romance em primeira pessoa, pelo olhar de Renata. É a personagem mais bem elaborada do romance. Aliás, vale ressaltar um aspecto importante desse livro: a prevalência das personagens femininas sobre as masculinas.
São as personagens femininas que inspiram o narrador em frases tão bonitas e carregadas de sabedoria, como a que abre o primeiro capítulo da segunda parte do livro: “As paixões amorosas vão se impregnando no corpo e penetrando fundo na alma. São como tatuagens na alma”; ou, a mesma Renata inspirando outro amor de sua vida: “, o que os olhos comunicam contém informações sobre todo o nosso ser. Talvez não os nossos pequenos segredos, mas a nossa essência”. A mesma protagonista, em crise existencial: “Renata caminhou na chuva que molhava os seus cabelos esperando que iluminasse seu pensamento ou umedecesse sua vida. (…) Não pensava, apenas sentia, parecia esmagada por uma invisível tonelada de isolamento e solidão”.
Ou, pela boca da contraditória e encantadora Edith: “O ciúme é uma doença, não é mesmo? É uma doença igual à paixão amorosa”.
* (Buarque, Sérgio C. Geração D, Rio de Janeiro, Autografia, 2023)
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