Houve um tempo em que o fim do ano sofria uma enxurrada de poemas de Natal. Revistas e jornais cintilavam de versos. Era, por assim dizer, um evento extremo. Drummond chegou a comentar (ele próprio um glosador do tema) que o mal era “industrializar” o assunto. Mas as chaminés natalinas não poluíam os ares com seus líricos vapores. Esse tempo passou, como passam os anos e os Natais.
Machado de Assis, num soneto que é uma espécie de metapoema, chegou a criar um verso que caiu na graça do povo e das gerações: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”. É esse decassílabo famoso que o poeta pernambucano Mauro Mota vai fixar como epígrafe de seu poema “Natal”. E, como veremos, com grata razão. Na sua aparente simplicidade e graciosa apresentação musical, “Natal” mostra uma síntese complexa da relação do eu lírico com o passar dos Natais e sua paradoxal “eternidade”, prelúdio, quem sabe, da vida eterna prometida a todos os cristãos.
Por conciso, transcrevo na íntegra, esse belo e abissal poema, dele fazendo a seguir uma breve análise, tentando explicitar as elipses e os silêncios tão bem ordenados de sua estrutura. O que adiante desejo é tão somente, sem prejuízo para o encanto de tais versos, revelar alguns segredos que fazem desse texto tão compacto uma obra poética plena, rica de inquietação e verdade.
Natal, antes e agora
imutável. Feliz
noite branca sem hora
no pátio da Matriz.
Natal: os mesmos sinos
de repiques iguais.
Brinquedos e meninos,
Natal de outros Natais.
A banda, vozes, passos
da multidão fiel.
Tudo nos seus espaços,
o mundo e o carrossel.
Tudo, menos o andejo
homem que se conclui.
Olho-me, e não me vejo,
não sei para onde fui.
Basta se ler o poema em voz alta (ou assim imaginá-lo) para ver que o poeta escolheu uma espécie de leveza ao abordar o tema, o que não exclui, ressalte-se, a complexidade subjacente, da qual tentaremos levantar não mais que a ponta do seu véu. Dessa leveza, os versos de seis sílabas não deixam dúvida, assim como as quadras e as rimas de tanta tradição ibérica, sem falar das imagens evocadas. Todavia o leitor haverá de perceber, sem de pronto identificar, alguma coisa estranha no ritmo insuflado ao poema: é o encavalgamento (em que Mauro é um consumado mestre), que faz com que o sentido do verso prossiga até a próxima linha, onde ali se completa numa espécie de cosimento métrico e rítmico; dessa forma, temos: “agora imutável”; “sinos de repiques”; “passos da multidão” e “o andejo homem”. Mas a escolha pela tradição, na qual se desenha um cenário interiorano e rural, não limitará o poema, como veremos, a um localismo de superfície, se é que este não é um puro pretexto à inquietação universal do poeta.
Outra característica da sua estrutura faz com que “Natal” tenha duas grandes partes, embora não explicitamente apontadas pelo autor. Uma primeira, que vai do início até “carrossel”, e a segunda, que se constitui unicamente da última estrofe. Reparem que toda a primeira parte é formada por frases puramente nominais, isto é, sem verbo, apenas com substantivos e adjetivos. É como se o eu lírico pintasse um quadro, fizesse um retrato e, assim fazendo, abolisse sua relação com o tempo (“noite branca sem hora”). A indicação de que as coisas se repetem colabora para o mesmo efeito: “os mesmos sinos”; “Natal de outros Natais”. O Natal é, dessa forma, uma memória circular, mas uma memória que se apoia em substantivos, uma memória do ser, ontológica, na qual o tempo, tal qual numa fotografia, está abolido, como apontaria Susan Sontag.
Enquanto a primeira parte é o esplendor dos nomes, com tudo o que ressoa e cintila de bom na memória: a imutabilidade, a festa, a infância, a música, a ludicidade, a segunda parte traz a angústia e o paradoxo de um eu que, embora atento àquela memória, já nos fala em termos verbais, em palavras de ação: “concluir-se”, “olhar-se”, “ver-se”, “ir-se”. De repente é como se todos os verbos chegassem de uma só vez para dar testemunho de uma inarredável angústia. Entre o peregrino (o andejo) e aquele que parece chegar a algum ponto (“concluir-se”), de uma parte, e o homem que não mais está presente e desaparece, de outra parte, há um outro homem que vai mais além: desaparece de si mesmo. Desaparecer de si, ressalte-se, é um dos grandes temas de nosso tempo, como bem o estuda o antropólogo David Le Breton (Cf. meu artigo Desaparecer na edição de 24 de março de 2023 desta Será?). Nesse sentido, o eu lírico, distanciando-se do particular e do local, abre um inesperado diálogo com o universal e sua época, como que rompendo a cápsula de uma limitada memória.
Enfim, com os verbos da última estrofe, Mauro Mota responde ao verso machadiano, como se dissesse: “Sim, sou eu que mudo, não o Natal, e mudo porque desapareço ou alguém em mim desaparece”. À ofuscante imutabilidade do Natal compartilhado da primeira parte do poema (como fotos num álbum de afetos), sucede a ausência/presença do ser humano, contingente e itinerante, do “homo viator”… À sensação de que as coisas estão em equilíbrio e bem encaixadas (“Tudo nos seus espaços, / o mundo e o carrossel”), irmanadas por uma inércia cósmica, sucede a fratura do desencontro consigo mesmo. É como se o poeta, por meio do eu lírico, nos dissesse de outra forma a conhecida frase de Kafka: “Há esperança, mas não para mim”. Eis um poema em que a luz é acariciada pela sombra, escrito por um poeta que confrontava o transitório.
Feliz Natal!
Magistral sua exegese do poema de Mauro Mota, que já li muitas vezes, bem como a referência ao soneto de Machado, que sei de cor. Só faço uma restrição, talvez idiossincrática: detesto a expressão “eu lírico”, talvez pelo abuso que críticos bisonhos têm feito, desnecessariamente, dela.
Meus mais efusivos cumprimentos! Você enobrece a Revista Será?
Obrigado, Mestre Clemente, por seu generoso comentário. Um feliz Natal e um belo 2024!
Abraço fraterno
Obrigado, Mestre Clemente, por seu generoso comentário.
Feliz Natal e um belo 2024.
Abraço fraterno