Semana passada, 14 de dezembro, aconteceu em Cuba um evento que promoveu um balanço dos 19 nos de construção da Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América Tratado de Comercio de los Pueblos (ALBA-TCP), iniciada em um acordo entre Fidel Castro e Hugo Chavez, envolvendo primeiramente seus respectivos países, chegando em 2012 a ter 11  formalizados internamente. Trata-se da principal expressão do bolivarianismo, e o intento aqui consiste em lançar algumas notas a respeito de como este modelo alternativo para a integração da América Latina se insere nos padrões institucionais precedentes com o mesmo objetivo, em especial, na Asociación Latinoamericana de Integración – ALADI. Se concluímos que as propostas do Consenso de Washington levam a América Latina à precarização endêmica, o aprimoramento institucional de nossas relações é a maior garantia de continuidade e fortalecimento de projetos independentes, e nisto reside a reflexão adiante.

Como resgate do espírito de independência das ex-colônias ao Sul do Novo Mundo, o bolivarianismo pode ser visto como uma revisão dos Libertadores da América enquanto referências, em um novo contexto, imersa no chamado Socialismo Moreno. Assume um conceito de democracia que não é o mesmo do liberal, do representativo, muito mais ligado a mecanismos de consulta direta, tanto através de plebiscitos e referendos como em comitês locais. Todo liberalismo lhe soa estranho (para não dizer repulsivo). Ganhou força no exercício na ortodoxia econômica neoliberal disseminada nos anos 1990, como resistência. Por isso, não faz sentido pensá-lo nos parâmetros da New Public Mangement; é preciso entendê-lo, porque qualquer integração por aqui passa por eles. Os países que melhor encarnam este viés são, sem dúvida, Venezuela, Bolívia e, como bússola, a mais representativa inspiração da esquerda do continente, Cuba.

Com a ascensão de Hugo Chavez na Venezuela, em 1999, que inclusive incluiu “Bolivariana” no nome de seu país, a articulação com Fidel tornou-se um caminho mais que natural. Em 2004 fechou-se um acordo econômico bilateral que ganhou interesse de outros governos de esquerda, de modo que em 2008 a ALBA se constituiu como um tratado já entre Cuba, Venezuela, Bolívia, Nicarágua, Dominica e Honduras. Posteriormente, entraram Antigua e Barbuda, San Vicente e Granada (2009), Suriname, Santa Lúcia e Haiti (2012). Equador entrou e saiu, assim como Honduras, e atualmente conta com 10 membros. É um número representativo, de um espectro político sempre presente no continente, que se opõe frontalmente a “presentes” que os setores mais reacionários nos deram, como Collor, Menen, Bolsonaro e Milei. Aprimorar a integração deles com outras articulações regionais consiste numa tarefa fundamental, inclusive para seu aprimoramento. Diante da imersão neoliberal empreendida pela CEPAL nos anos 1990, que abandonou décadas de propostas desenvolvimentistas, pode-se dizer que a ALBA é materialização da proposta cooperacionista de Ruy Mauro Marini, contraposição à competitividade eminente desta guinada cepalina.

A relação entre o diagnóstico de Marini, atualmente discutido dentro da própria CEPAL (mesmo que com timidez), e a Alianza Bolivariana foi claramente descrita em trabalho de Nilson Araújo de Souza e Luisa Moura (2013). Nele faz-se a oposição entre o projeto “regionalismo aberto” defendido pelo citado órgão regional da ONU, que influenciou blocos regionais a estruturarem a integração como “livre comércio” aberto a outras regiões de forma bilateral, e a Teoria Integracionista cooperacionista, pautada pela complementaridade e integração das atualmente chamadas de cadeias de valor. Defendendo a idéia de que a dependência deriva principalmente da baixa produtividade do trabalho, que condicionaria acentuada mais-valia absoluta (baixos salários e condições precarizadas de trabalho), aponta a urgência tanto da participação da sociedade civil organizada neste que, politicamente, pode ser chamado de um novo padrão de “qualidade da democracia”(Estado e mercado precisam compartilhar decisões com sociedade), quanto uma conexão entre os países na forma de produzir. Segundo Souza e Moura, a proposta cepalina do início dos anos 1990 estava pautada em 10 critérios:

  1. Políticas macroeconômicos que corrijam desequilíbrios da década de 1980 (inflação e dívida pública)
  2. Reforma tributária para gerar financiamento e maior equidade, 
  3. Cach Up tecnológico
  4. Formação de recursos humanos
  5. Revalorização social da função empresarial, 
  6. Revalorização do espaço rural, 
  7. Manejo cuidadoso dos recursos naturais, adequação dos serviços básicos, 
  8. Redefinição do papel dos bancos 
  9. Inserção das economias da região no contexto internacional e 
  10. Relação entre Estado e mercado

Vistos de relance, não há nenhum absurdo neles. Porém, tomando os 8 primeiros pelos 2 últimos, depara-se exatamente com o “estado mínimo” (10) e vulnerabilização das estruturas produtivas locais (9), exatamente as duas bombas-relógio do Consenso de Washington. Estes princípios, voltados ao comércio e menos à produção (e, conseqüente, estagnação da produtividade do trabalho), são visíveis nos acordos regionais da ALADI, mesmo que não expressos em seu documento orientador, o Tratado de Montevidéu (1980), onde estão ancorados tanto Mercosul como a ALBA. Em trabalho paradigmático sobre o Novo Desenvolvimentismo, uma revisão do antigo desenvolvimentismo contextualizada nos desafios do Século XXI, Bresser-Pereira (2007), apesar de reconhecer que os aprimoramentos institucionais são importantes, também admite que em conjunto com a liberalização e mercantilização radicalizada transformam a proposta em algo danoso. Seriam 2 Consensos de Whasington: um sobre ajustes institucionais no funcionamento interno do Estado, o que isoladamente não seria necessariamente algo ruim, e outro, posterior, com fragilização do Estado e das relações aduaneiras; os dois juntos desembocam no neoliberalismo.

Para entender onde a ALADI entra nisso é preciso entender primeiro seu funcionamento. Não se trata exatamente de um bloco econômico típico, mas da portadora de um protocolo para estabelecimento de acordos multilaterais (como Mercosul e a própria ALBA, que se formalizou na ALADI em 2013) ou simplesmente bilaterais, regulando as relações entre seus membros e entre estes e outros, sendo depositária e garantidora institucional destes acordos. Inclusive, possui uma “moeda” de compensação de pagamentos de transações internacionais, o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CPCR), instrumento que foi tentado inicialmente com sucesso pela ALBA através do SUCRE, mas atualmente enfraquecido. 

Como sucessora da ALALC,  a ALADI traz como uma de suas diferenças o tratamento diferenciado entre economias mais desenvolvidas (para as chamadas industrializadas de renda média, como México, Brasil e Argentina) e as menores, garantindo parâmetros adequados para as que chama “economias de desenvolvimento relativo”. São países-membro da ALADI Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México, Panamá, Paraguai, Perú, Uruguai e Venezuela, mais Nicarágua, que está em processo de negociação desde 2011. É importante salientar que, apesar de não fazerem parte, os demais países da ALBA estão vinculados à ALADI através de acordo multilateral liderado por Cuba com a CARICOM, assinado em 2000 e protocolado em 2002, de modo que as regras de governança econômica orientam todos os membros da aliança bolivariana.

Dois aspectos merecem atenção na conclusão deste artigo: i) na medida em que os países pertencentes à ALBA também seguem os protocolos institucionais da ALADI, um aprimoramento institucional da aliança bolivariana pode aprender com sua depositária e; ii) tanto pelo know-how em empreender missões estrangeiras como por ser o vértice da relação de boa parte dos países caribenhos e a ALADI, Cuba possui um papel central nesta integração.

A república socialista do Caribe tem experiência absoluta em missões internacionais relacionadas à educação (inclusive, coordenou um projeto de alfabetização em português em alguns países pós-independência, como Angola e Timor Leste). Provavelmente a ALADI é o órgão multilateral de âmbito econômico mais abrangente do qual é signatária, depois das instâncias da ONU, conhece seu aparato institucional, e pode adequar seus princípios à realidade de países mais pobres, com a garantia de não rumar para penhascos neoliberais nocivos, estabelecendo uma mentalidade de mercado cooperativa, nos moldes indicados por Marini.

Na medida em que é fiadora de um acordo entre a ALADI e CARICOM, e que trouxe para o pacto bolivariano os países economicamente mais vulneráveis do bloco caribenho, Cuba potencializa uma rede de relações econômicas e políticas com as nações que mais precisam da aprendizagem esboçada no parágrafo anterior. Em outras palavras, pode recorrer à capacidades que comprovadamente tem para se fortalecer no comércio internacional e criar alternativas para seu próprio desenvolvimento econômico, sem perder a integridade em relação aos princípios que lhe proporcionaram a mais emblemática ruptura com a dependência imperialista.

O SUCRE tem este nome em homenagem a Antonio José Sucre, comandante da última batalha na guerra de libertação da América Espanhola: um detalhe, dentre tantos outros 500 anos de motivos para que estejamos sempre atentos a cada milímetro para defender nossa integridade; alguns radicalizam, mas no final, a colaboração é obrigatória. Para missões como as propostas neste final, dentro do contexto apresentado brevemente, existem abordagens sistemáticas e amplamente aceitas (inclusive por “enamorados” do neoliberalismo) de cientistas sociais progressistas, como a Institutional Analysis and Develpment de Elinor Ostrom (2005), progressista vencedora do Nobel de Economia de 2009, focada exatamente na governança coletiva de recursos de uso comum em nível policêntrico (do nível local ao internacional), e o Planejamento Estratégico Situacional – PES, de Carlos Matus (Dagnino, 2014), ministro de Salvador Aliende: ambas lançam para diagnósticos e estratégias pautadas na Teoria dos Jogos, quantificáveis, capazes de proporcionar planejamentos precisos sobre o que fazer e o quanto investir. 

Referências:

BRESSER-PEREIRA, L.C. (2006). O Novo Desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional. Revista São Paulo em Perspectiva (SEADE), vol.20, n 3, julho-setembro 2006

DAGNINO, R.P (2014). Planejamento estratégico governamental. Brasília: CAPES-UAB.

OSTROM, E. (2005a). Understanding Institutional Diversity. Princeton, NJ: Princeton University Press.

SOUZA, N.A de; MOURA, L (2013). Integração contemporânea da América Latina: teoria e prática. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, Dourados, v.2. n.3, jan./jun., 2013