Wikimedia by  Secretaría de Cultura de la Ciudad de México

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Muita gente manifestou surpresa com o resultado da eleição de 2 de junho no México. Não porque os eleitores tenham escolhido como Presidente a indicada e defendida pelo presidente André Manuel Lopez Obrador, o popular Amlo. Que Claudia Scheinbaum, ex-prefeita de Cidade do México, seria a eleita, todos davam como certo. Em maio, todas as pesquisas de opinião lhe davam entre 52% e 56% das preferências. A surpresa foi que a patrocinada por Amlo teve praticamente 60% dos votos. Sua concorrente, Xóchitl Gálvez, ficou 32 pontos percentuais atrás. No México a eleição se dá em turno único para um mandato de 6 anos sem reeleição, consecutiva ou não. Desde 1934, o México elege a cada seis anos um novo presidente. Aos 90 anos de continuidade institucional, pela primeira vez elegeu uma nova presidente. De lavada.

Houve analista que, ainda durante campanha, em feroz diatribe contra o Presidente López Obrador e as tendências autocráticas nele identificáveis, manifestou a esperança de que Xóchitl Gálvez conseguiria mostrar o risco de autocracia numa candidatura defendida por Amlo e fazer com que eleitores “optassem pela democracia”. Deve ter ficado surpreso em dobro. De qualquer modo essa disjuntiva entre democracia e autoritarismo, slogan de campanha, foi enterrada em 2 de junho, pois ninguém dirá que são contra a democracia os quase 36 milhões de mexicanos que votaram em Claudia Scheinbaum e no partido-movimento Morena (“Movimiento de Renovación Nacional”).

A oposição é que não soube defender a democracia. A retórica sobre o perigo de “liberdade e democracia” serem substituídas por “tiranias populistas”, mesmo que o perigo seja real, não convenceu aqueles que ouviram Amlo reagir às várias críticas repetindo o refrão de tantas “mañaneras”, suas longas entrevistas diárias: “tengo otros datos”. Mesmo quando lhe apresentavam dados de desemprego alto e falta do crescimento econômico esperado, repetia o refrão, “tenho outros dados” e argumentava que tinha ido aos rincões mais pobres e vira reativação econômica. Foi por democracia que a população mexicana votou, e venceu a maioria, a mostrar que democracia não é monoparamétrica, não é conceito com sentido único e claro para todas as pessoas, muito menos numa sociedade com elevados índices de desigualdade, quase tão extremos quanto no Brasil. Quem sabe os mexicanos não votaram com a razão e sim com o fígado. Ou os mexicanos deram mais crédito à política social de transferências diretas de renda e não perceberam o enfraquecimento das instituições. Não viram que o controle do governo sobre partes do território mexicano foi perdido para os cartéis de traficantes com a política de “abrazos, no balazos”, não sabem que há zonas do país em que não existe a liberdade de ir e vir para qualquer cidadão, e que os homicídios aumentaram. Talvez tenham esquecido as centenas de milhares de mortos por uma política de saúde irresponsável durante a pandemia.

Tanto a imensa popularidade de Amlo quanto a vitória de sua escolhida e do partido Morena no Congresso têm até explicações simples, que vale examinar. É fato que algumas de suas ações e propostas geram temor da volta de um típico caudilho latino-americano voluntarista “que, exatamente por ser popular, acha que está acima das leis e normas democráticas”. Essa a caracterização que Mario Vargas Llosa deu do Presidente López Obrador quando este completava seis meses da sua Presidência. (“O populismo mexicano”, Estadão 02/06/2019) Vargas Llosa não ficou sozinho nesse tipo de diagnóstico, compartilhado por muitos intelectuais e políticos latino-americanos e mexicanos, que continuam com a mesma percepção.

Devemos examinar as ações e propostas que Amlo veio a executar em seu sextênio. Paradoxalmente, um componente do seu sucesso eleitoral parece ter sido exatamente o que causa a repulsa que expressam sinceros e informados defensores do regime democrático: as características da liderança exercida por López Obrador (relacionadas com as características de personalidade). Recorro ao grande historiador mexicano Enrique Krauze, de cujas credenciais democráticas ninguém pode duvidar: López Obrador “predica la ‘refundación’ de México, y se siente llamado por una instancia superior para ‘salvar’ al pueblo mediante la sola emanación moral de su ‘apostólica’ persona. Esta actitud – estoy convencido – es intrinsicamente autoritária e incompatible con la vida democrática, porque concentra la vida pública en la relación hipnótica entre el líder y la masa”. Krauze disse isso em 2012, durante a segunda tentativa eleitoral de Amlo. (“El verdadeiro triunfador”, 04/06/2012) 

É alarmante ver que o alerta de Krauze (que já estava em seu livro “López Obrador – El Mesias Tropical” e que repetiu em entrevista às vésperas da eleição de 2 de junho) (https://www.youtube.com/watch?v=luzG5mMPa0U)  virou éter diante da lista de feitos do sextênio 2018-2024. Já nos primeiros seis meses de governo o novo presidente tinha tomado medidas que não é justo denominar antidemocráticas. Chegou austero, cortou salários dos funcionários do alto escalão, inclusive o dele próprio, leiloou os carros oficiais, e usava voos comerciais. Conseguiu manter a aura anticorrupção, ainda que tenham existido ruídos sobre manobras e uso de recursos públicos nas eleições internas do partido Morena para indicar seu/sua candidato/a presidencial e que levaram à candidatura de Claudia Scheinbaum. Mas a imprensa no México tem sido pautada pelas “mañaneras” e uma oposição frágil e desarticulada. 

Cancelou, logo que assumiu, a construção do aeroporto internacional na Cidade do México, que estava pela metade, causando na época grande celeuma e reclamações de investidores. E, no intento de atenuar desequilíbrios regionais, tratou de construir a ferrovia que contorna a província do Yucatán a partir do Aeroporto de Cancún, seu polêmico megaprojeto do “Tren Maya”. Não sem antes realizar uma cerimônia maia para início da obra. Aliás, por esses dias Amlo andou sobrevoando a ferrovia, com grande publicidade, “antes de entregá-la à sucessora”.

Ele próprio pouco viajou ao exterior, ao manter uma política externa sem maiores pretensões, com a tese de neutralidade e não interferência, e praticamente limitada a negociações com os Estados Unidos, focadas na questão dos imigrantes e no comércio. As negociações com o Presidente Biden e a Patrulha das Fronteiras deram muito trabalho à Ministra das Relações Exteriores Alicia Bárcenas e o México ajudou o quanto pode a conter imigrantes no território mexicano, tendo resistido à pressão americana para que se responsabilize por devolvê-los a seus países de origem.

Transferências de renda diretas aos beneficiados, sem intermediação, talvez expliquem mais que qualquer outra coisa a popularidade presidencial. Dobrou a aposentadoria dos maiores de 68 anos. Reorganizou o sistema de creches de modo a pagar diretamente 800 pesos por criança às mulheres que cuidam das crianças, nas creches ou em suas casas. Gradualmente aumentou o salário mínimo, que dobrou em cinco anos de governo. E o Presidente sempre cuidou de deixar claro aos beneficiados, inclusive pequenos produtores locais, que era a ele que se devia qualquer melhora de bem-estar. Tudo indica que nessas condições não funcionou o alarme de uma contradição entre caudilhismo e instituições da democracia. López Obrador é responsável pela redução da pobreza tanto quanto pela cegueira dos seus eleitores em relação à fragilidade institucional, como seria, por exemplo, uma Corte Suprema de membros eleitos (uma ideia defendida por Amlo e sua protegida que não existe nas democracias).

O alerta do risco autocrático vem sendo repetido agora quando Amlo tem somente mais quatro meses na Presidência, na transição até a posse da nova presidente em 1º de outubro. Mais ainda, pelas coincidências de prazos neste ano, Amlo terá o último mês de seu mandato já com a nova Câmara de Deputados que começa suas sessões em 1º de setembro, e na qual seu partido Morena obteve maioria, assim como no Senado.

Ainda não se sabe exatamente se terá maioria qualificada para as reformas constitucionais que pretende, inclusive aquela, rejeitada em 2023 pela Corte Suprema como inconstitucional, que implica uma confusão entre funções de segurança da polícia civil com as funções militares na segurança nacional. Setembro será um mês perigoso para o México. A presidente eleita, Claudia Scheinbaum, logo que recebeu as felicitações de seus adversários, afirmou que quer ser a presidente de todos os mexicanos e conclamou à cooperação e ao trabalho conjunto de todos os partidos. Para isso, paradoxalmente, terá que se livrar da sombra do predecessor. Conseguirá?