Uma antiga anedota, aliás muito apreciada pelo poeta João Cabral, diz que um louco, um tanto eufórico, chegou para o psiquiatra e disse: “Doutor, estou lendo um romance que só tem personagem!”. E aí não tardou que o médico descobrisse que o tal romance se tratava de… uma lista telefônica! Havia, então, impressas e imprescindíveis, as listas telefônicas…
O que esse louco poderia ter dito de um dicionário que, “grosso modo”, não passa de uma lista de palavras com seus usos e significados? O que nele veria esse simpático louco que tanto nos diverte? Talvez lesse não um “romance”, mas um filosófico ensaio de ontologia… “Aceitam-se teorias”, como diz Guimarães Rosa.
E, por falar em Guimarães Rosa, o genial mineiro saiu-se com esta em famosa entrevista: “No dia em que completar cem anos, publicarei um livro, meu romance mais importante: um dicionário”. E, como o entrevistador, estranhasse e dissesse que um dicionário “é o mais impessoal de todos os livros”, Rosa replicou: “Um dicionário não é tão completamente impessoal como você pensa; por isso falei dele relacionado à minha autobiografia. Pode entender literalmente o que acabo de lhe dizer e acrescentá-lo à minha poética […]” (Cf. “Guimarães Rosa”, Col. Fortuna Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; INL, 1983). Por outras e literárias vias, Rosa confraterniza com o louco da mencionada anedota… Vem a calhar, pois, o que Carlos Drummond jocosamente teria dito: “Guimarães Rosa é um louco que pensa que é Guimarães Rosa”.
Loucura e literatura à parte, atualmente parece faltar ênfase ao saudável uso dos dicionários do vernáculo, embora o Google, claro, faça as vezes de dicionário, e nossos celulares tanto guardem versões digitalizadas quanto acessem os existentes na Web. Lembremos que os dicionários de nosso idioma formam uma grande família, abordando etimologia, regência, sinônimos e antônimos, dificuldades da língua, usos, ideias afins e regionalismos… Nesta última categoria, destaca-se, entre nós, o “Dicionário do Nordeste”, de autoria de Fred Navarro, jornalista e escritor pernambucano radicado em São Paulo. Com suas 700 páginas e 10 mil verbetes, essa obra é uma robusta enciclopédia cultural dessa região do País.
Em seu irônico e satírico “Dicionário do Diabo”, Ambrose Bierce (1842–1914), jornalista e escritor americano, consigna um verbete chamado justamente “dicionário”, que ele define nestes termos: “Um dispositivo literário malévolo para impedir o crescimento da língua e para a tornar rígida e pouco flexível”. Naturalmente, todo dicionário já nasce incompleto e não será “malévolo” por isso. A razão é que a língua sempre está criando novas palavras e expressões, sem falar que há termos que, por vários motivos, escapam à pesquisa do lexicógrafo. Em suma, enquanto o dicionário é estático, a língua é puro dinamismo. A internet tem tentado abreviar esse hiato, como demonstram o “Urban Dictionary”, criado em 1999, e o seu parente brasileiro: o “Dicionário Informal”.
O termo “dicionário”, anota o ensaísta argentino Alberto Manguel, em seu livro “Encaixotando minha biblioteca”, de 2018, “[…] misturou-se com enciclopédia e agora denota não apenas inventário de palavras, mas repertórios temáticos de tudo que há sob o sol, incluindo o sol”. Com efeito, existem dicionários para todos os gostos e de todas as especialidades: arquitetura, gastronomia, política, citações, cinema, psicanálise, medicina, folclore, automóvel, de autores literários e filosóficos, etc. Existe até, valha-nos Deus!, um “Dicionário Infernal”!
Ao veterano “Dicionário Universal Nova Fronteira de Citações” (1985), de Paulo Rónai, não poderia faltar um verbete sobre… “dicionário”. Ali encontramos sábias palavras de um dos mais importantes lexicógrafos ocidentais, o inglês Samuel Jonhson (1709–1784), o célebre Dr. Jonhson, que vai ao ponto: “Os dicionários são como os relógios; o pior é melhor do que nenhum, e nem do melhor se pode esperar que seja totalmente exato”. E não esqueçamos de Flaubert que, no verbete “dictionnaire” de seu conhecido “Dicionário das Ideias Feitas”, parece pretender criticar um lugar-comum de seu tempo: “Dizer deles: ‘Não é feito para os ignorantes!’”.
À semelhança do Dr. Jonhson, há dicionaristas que ficaram para sempre identificados com suas obras e seus países, viraram sinônimos de dicionário: o caso de (como nos lembra Manguel), Sebastián de Covarrubias na Espanha, Littré na França, Noah Webster nos Estados Unidos, de Ambrogio Calepino na Itália (este bom Calepino deu a lume, já no remoto ano de 1502, um gigantesco dicionário multilíngue!). No Brasil, tivemos Antonio de Morais Silva (1757–1824), um pioneiro, além de nomes como Antenor Nascentes (1886–1972), Aurélio Buarque de Holanda (1910–1989), Antonio Houaiss (1915–1999), Francisco da Silva Borba e Luiz Antonio Sacconi, estes dois últimos ainda em atividade.
Perfeito.