Em seu mais recente livro, “Nexus”, o historiador Yuval Noah Harari, já bem conhecido dos brasileiros, narra, à certa altura, que esteve em Chernobyl, onde houve o mais grave acidente nuclear da História. Ali escutou de um guia ucraniano algo que o impressionou: “Os americanos são criados com a ideia de que perguntas geram respostas. Mas os cidadãos soviéticos eram criados com a ideia de que perguntas geravam problemas”. O sistema do projetado “homem novo” não admitia quaisquer questionamentos, quaisquer correções, quaisquer críticas. A máquina totalitária soviética, por assim dizer, já tinha suas respostas eternas e infalíveis!
Uma piada pinçada por Harari (provavelmente existiam várias outras) dos tempos de Stálin ilustra um poder que se estende à tentativa de controlar as próprias famílias. Contava-se à boca pequena que o ditador, disfarçado, numa visita a uma fábrica, conversa com um operário: “Quem é seu pai?”; “Stálin”, responde o operário. “Quem é sua mãe?”, continua o ditador. Resposta: “A União Soviética”. Stálin, satisfeito, ainda pergunta: “E você quer ser o que na vida?”. E o trabalhador responde: “Um órfão”. Só de contar uma piada assim poderia se perder a liberdade ou a vida. Essa era a atmosfera de que “perguntas geravam problemas”. Problemas que não teriam resposta.
Em negativo, leia-se que a democracia requer o livre curso das perguntas, das dúvidas e das inquietações, e respostas, por sua vez, não devem ser dogmáticas. No Brasil atual, sob Lula, muitas pessoas acreditam que vivem numa ditadura, sem se dar conta de que num regime fechado não estariam gritando abertamente suas críticas nas ruas, nas esquinas e em toda parte. Elas têm o amplo direito de perguntar, e nós temos o direito de supor que elas possuem um sofrimento mental que as impede de discernir claramente.
Na verdade, as pessoas acima estão projetando os seus temores completamente infundados. No fundo de si mesmas, há o visgo forte das convicções, um visgo praticamente religioso, febril e visceral. Elas passam, por diversas razões, ao largo das perguntas, e a dúvida não pertence a seus hábitos tão próximos do fanatismo. Elas simplesmente acreditam, como se o mundo não passasse de um gigantesco templo. A dúvida para tais pessoas parece algo diabólico; não percebem que é a dúvida que move o mundo e promove a ciência que lhes traz bem-estar, saúde e outros bens.
Com razão, Harari observa que “Os crentes convictos desempenham um papel fundamental no surgimento de todas as principais religiões e ideologias […]”. No fundo, como notou muito bem Marcel Proust, há sempre uma “sede de crença”. Acredita-se, e então começa uma nova história. Mas há convicções a se temer. A de Hitler matou milhões, a de Stalin e a de Mao mataram outros tantos milhões. A convicção transita, como um elixir energético, de líderes maduros para jovens que buscam firmeza no terreno movediço da realidade. No templo neopentencostal ou nos ambientes totalitários, a convicção sempre quer um homem novo, isento da “maldade” das perguntas difíceis e incômodas que “geram problemas”.
Se a democracia, como Harari e tantos outros sugerem, é uma conversa, logo se percebe como as perguntas lhe são inerentes. Elas não só “geram respostas” como geram novas perguntas. Parece óbvio e é óbvio. Conversar pode não ser fácil, mas não conversar sempre piora as coisas, e isso talvez seja a mais consistente das razões para vencer os obstáculos postos à democracia.
Finalmente, peço ao/à leitor/a que não veja, nas palavras acima, uma condenação “per se” e sumária a qualquer convicção, embora algumas convicções possam atrapalhar a grande e bela conversa da democracia. Talvez uma citação de Avicena (polímata persa do século XI d.C.) possa nos ajudar a compreender melhor o papel de uma convicção: “Um homem não sente dificuldade em caminhar por uma tábua enquanto acredita que ela está apoiada no solo; mas ele vacila — e afinal despenca — ao se dar conta de que a tábua está suspensa sobre um abismo”. Talvez o bom e sábio Avicena sofresse de acrofobia, mas suas palavras nos soam justas e serenas.
Muito bom como sempre,poeta!👏