Kautsky e a Revolução Russa – introdução de Sérgio C Buarque
O dia 7 de novembro de 1917 (no calendário gregoriano) entrou para a História com a insurreição bolchevique na Rússia, que deu origem à União Soviética e marcou todo o ciclo político ao longo do século XX. O Partido Bolchevique (na verdade, o segmento do antigo Partido Social-democrata Russo) dirigido por Lenin e Trotsky, suspendeu a Constituinte e, no meio de uma guerra civil, implantou o regime soviético de poder de partido único e controle autoritário do Estado. Embora a repressão mais violenta venha a ocorrer mais tarde, com a ditadura de Stalin, desde os primeiros anos da União Soviética, alguns notórios socialistas europeus, mesmo defendendo a revolução, fizeram críticas duras aos desvios ditatoriais de Lênin. Críticas que, em grande medida, antecipavam a degradação posterior da União Soviética. Entre estes críticos, destaca-se o líder social-democrata alemão, Karl Kautsky, um dos maiores teóricos marxistas da época, que recebeu uma dura resposta de Lênin com o depreciativo epíteto de “renegado Kautsky”, que maculou sua imagem na história do socialismo. O brilhante texto de Rubens Pinto Lyra resgata a reputação e o pensamento do socialista e marxista Kautsky, refletindo sobre o seu legado para o século XXI.
LEGADO DE KAUTSKY PARA O SÉCULO XXI
Rubens Pinto Lyra (*)
A tarefa do socialismo em relação ao comunismo é a de zelar para que a catástrofe moral de certo método do socialismo não se torne a catástrofe do socialismo em geral, e para que esta distinção esteja claramente presente na consciência das massas.
Karl Kautsty, 1918 in:
Terrorisme et communisme
A produção teórica de Kautsky é sui generis, ampla, atual, e de grande interesse para questões fundamentais de nosso tempo, como as atinentes ao socialismo e à democracia. Ele, com maior destaque que a de outros autores, vítimas do anátema lançado pelos comunistas, tem muito a contribuir para desvelar a ditadura supostamente democrática (para o proletariado) do regime leninista. Nas palavras do historiador Rui Fausto, avis rara na fauna dos intelectuais marxistas brasileiros, simpático às teses de Kautsky sobre a Revolução Russa:
“A bruma que envolve o movimento socialista no século XX é muito mais espessa do que se supõe em geral e há materiais importantes enterrados sob o peso de mitologias ainda poderosas. Há autores que não se lê, partidos e organizações que quase não deixaram traços, há acontecimentos quase esquecidos” (2001:290).
Uma das principais condições para que a “bruma” que envolve o movimento socialista” possa se dissipar. é o aprofundamento do debate sobre a relação entre leninismo e stalinismo, que poderá levar autores, como foi o caso de Fausto, a estabelecer uma relação de continuidade entre ambos: “o stalinismo não viria à luz se não tivesse existido o leninismo” (2017: p.20).
Boa parte dos últimos vinte anos da vida de Kautsky, que vão de 1918 a 1938, foram dedicados à crítica do regime soviético, considerado por esse teórico como sendo atrasado economicamente, injusto, do ponto de vista social e politicamente ditatorial: em suma, um parêntesis na história do desenvolvimento do modo de produção. Apresenta, portanto, características opostas a de um regime socialista, o qual somente se justifica historicamente pela superioridade de seu sistema econômico face ao capitalismo, pela promoção crescente da igualdade social e pelo seu caráter democrático. Ademais, para Kautsky, o regime soviético, por se sustentar na repressão, é ainda mais negativo de que o capitalismo, com características totalitárias, semelhantes, desse ponto de vista, ao fascismo.
A concepção de transição ao socialismo, supramencionada, Kautsky simplesmente a pede emprestado a Marx. Ela é ontologicamente indissociável da própria teoria marxiana e está na raiz de todos os demais componentes do legado kautskiano, relacionados com a sua compreensão do bolchevismo, da democracia e do socialismo, entendidos estes dois últimos conceitos na sua “complementaridade dialética”. A esta primeira singularidade – a de ser uma crítica marxista (mais do que isto: marxiana) do bolchevismo, acrescente-se uma segunda: o questionamento da dissociação estabelecida entre a Rússia sob Lênin, que teria seguido o rumo do socialismo de acordo com os cânones marxistas, e a dirigida por Stalin, que teria conduzido o regime soviético a um processo de degeneração Na ótica kautskiana, muito pelo contrário, o stalinismo teria sido “a culminação necessária do bolchevismo”. Na síntese de Salvadori:
(…) Fora Lênin, com efeito, quem destruíra a possibilidade de desenvolvimento democrático aberta na Rússia em fevereiro de 1917 e forçara as condições econômico-sociais, não maduras para o socialismo. O preço desse forçamento fora a ditadura armada de minoria, que inutilmente Lênin buscara conciliar com uma democracia soviética, impossível em si. Fora Stalin quem eliminara definitivamente a contradição, tornando-se, assim, ao mesmo tempo, herdeiro de Lênin e aquele que depurara a sua obra da insustentável contradição entre ditadura do partido e democracia soviética (…) (SALVADORI, 1986:290-291).
Vê-se que Kautsky foi o único teórico marxista de envergadura que identificou Lênin como aquele que lançou os fundamentos do socialismo real e foi também o único a vaticinar o seu inevitável desaparecimento. Ele já havia indicado, desde 1919, em Terrorismo e Comunismo, a impossibilidade de o regime bolchevique construir o socialismo. Mais adiante, em 1930, na obra portadora do sugestivo de título de O bolchevismo no impasse, vai mais além, afirmando que
(…) Essa louca experiência vai terminar em um estrondoso fracasso. Nem mesmo o maior dos gênios poderá evitá-lo. Ele resulta naturalmente do caráter irrealizável da empreitada, nas condições dadas, com os meios utilizados. Quanto maior é o projeto, maior a violência para obter resultados, que só poderiam provir de uma lâmpada mágica, como a de Aladin (…) (1931:21).
Tais previsões – sublinhe-se com ênfase – foram feitas, as primeiras, há quase cem anos, e as segundas, sessenta anos antes da queda do Muro de Berlim. Não obstante, o que o “renegado Kautsky” previu nesse período já distante – nos primórdios da Revolução Russa – causou surpresa geral em todo mundo, em 1989, ocasião em que a “louca experiência” soviética ruiu como um castelo de cartas, concluindo-se em um “estrondoso fracasso”.
Outro aspecto igualmente singular das análises do teórico marxista de maior destaque da II Internacional foi a sua inabalável, consistente e reiterada convicção da indissociabilidade entre socialismo e democracia, o que o deixou, nesse aspecto, isolado no interior da própria social-democracia, da qual tinha sido o mentor inconteste. Mas realce-se a íntima relação entre essa tese com a da natureza da transição socialista, já referida, geneticamente portadora desses três ingredientes: capitalismo avançado, protagonismo obreiro e democracia política.
Mesmo teóricos e líderes políticos sociais-democratas de primeira grandeza, como Otto Bauer – cujas análises foram feitas no apogeu da era estalinista – consideravam ser possível construir primeiro o socialismo, depois a democracia, nos países de economia atrasada e proletariado ainda incipiente. Com base em tais concepções, Bauer justificou a ditadura stalinista, mesmo lamentando suas iniquidades, por considerar que tais países, antes de chegar ao socialismo, teriam que trilhar um caminho “que não poderia ser construído com os tijolos da democracia política” (SALVADORI: 1986:300).
Sob a égide do stalinismo, Kautsky foi uma voz isolada, entre os marxistas – e mesmo entre os socialistas em geral – a se colocar em posição de equidistância entre o bolchevismo e o capitalismo, preconizando uma Terceira Via, como a efetivamente socialista e democrática. Com efeito, naquele período, contavam-se no dedo, entre os socialistas, os que não compartilhavam maniqueísmo imperante. Houve raras exceções, como na França: os “socialistas anti-atlantistas”, críticos, tanto do “imperialismo americano” quanto do “totalitarismo soviético” (LYRA: 1978, p. 231). Para a grande maioria, só havia duas opções possíveis: o “paraíso comunista” em construção ou o “mundo livre” capitalista, com sede nos Estados Unidos. (LYRA: 1978, p. 46-47). Por outro lado, nem mesmo Norberto Bobbio – que teve, entre muitos outros méritos – o de contribuir para que os partidos comunistas ocidentais de maior expressão abandonassem as posições leninistas refratárias à democracia na Europa Ocidental – compreendeu, como Kautsky, que a sua ausência em um regime político, significava também a do socialismo. Não apenas a do desejável, mas a do socialismo tout court. Um outro aspecto inovador da contribuição de Kautsky ao marxismo diz respeito à crítica por ele feita às concepções de Marx, relacionadas à teoria do colapso do capitalismo e seu caráter “putrefato” que Marx considerou, supostamente, putrefato. Ela se situa entre as justificaram as pechas de “renegado” e de “revisionista”. Esta teoria foi invocada pelos comunistas de todos os matizes, até o final dos anos cinquenta do século passado; a da ditadura do proletariado, tal como era compreendida por Lênin, e a tese de extinção do Estado, tal como Marx a concebia.. Por fim, Kautsky exaltou, contra o substituismo leninista, o protagonismo conferido ao conjunto dos trabalhadores no processo revolucionário; o caráter democrático, processual e pedagógico das lutas operárias, desenvolvidas sob o capitalismo, geradoras de um amadurecimento na consciência e na práxis das classes subalternas, que atuam como conditio sine qua non para o advento de uma nova hegemonia.
(*) Professor Emérito da UFPB. Autor, entre outros, de La Gauche en France et la Construction Européeene (Paris: LGDJ, 1978) e Bolsonarismo: ideologia, psicologia e temas afins. João Pessoa: Ed. do CCTA, 2021.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
Fausto, Rui. Caminhos da esquerda: elementos para uma reconstrução. São Paulo: Companhia de Letras, 2016.
Kautsty, Karl. Terrorisme et communisme. Paris: Ed. Jacques Povolowsky,1
Lyra, Rubens Pinto. La gauche en France et la construction europénnne. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1978.
Salvadori, Massimo. A crítica marxista ao stalinismo. História do marxismo. Vol. VII. São Paulo, Paz e Terra, 1986.
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