Brasilia

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Enquanto o Congresso Nacional legisla em causa própria, se apropriando de parte do Orçamento, o Supremo Tribunal Federal multiplica decisões monocráticas e contraditórias sobre temas de alta complexidade e o Executivo se atrapalha por não ter um projeto de nação, o país vive uma estranha normalização do improviso. E, muito mais grave, da erosão institucional. Não se trata apenas de disputas políticas quotidianas: é o tecido dos princípios republicanos que se desgasta silenciosamente, ameaça que deveria preocupar muito além das paixões do momento.

O que assistimos é a lenta corrosão dos alicerces que sustentam a convivência democrática: respeito às regras, equilíbrio entre os Poderes, proteção das liberdades civis e responsabilidade no exercício do poder. De 2018 a 2022, a extrema-direita tensionou esses pilares como poucas vezes se viu no país. Mas a troca de governo não trouxe serenidade: apenas alterou protagonistas e métodos.

O aparelhamento de instituições públicas, a confusão entre projeto partidário e interesse nacional, os velhos conchavos, paternalismo e o fisiologismo exacerbado — práticas incompatíveis com o espírito republicano — continuam a deformar o ambiente institucional. Persistem também os impulsos do poder sem contrapeso, agora travestidos de novo verniz progressista. 

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, atua como protagonista político, e não como árbitro jurídico. Decisões individuais, estendendo ou reinterpretando prerrogativas constitucionais, geram insegurança  jurídica e ampliam a percepção de que as regras estão sempre abertas a “adaptações circunstanciais”.  O princípio da autocontenção  não é observado pela instância máxima do poder judiciário, a quem cabe a responsabilidade de observar a estabilidade e a previsibilidade da jurisprudência de suas decisões.

Paralelamente, parte expressiva da esquerda brasileira, que deveria ser vetor de coesão social, dissolveu-se em agendas identitárias radicais. Movimentos que poderiam enriquecer a democracia, ao enfatizar apenas a diferença e o ressentimento, acabaram por fragmentá-la. A construção de um projeto nacional — que pressupõe o reconhecimento de um destino partilhado — foi substituída por narrativas exclusivas, muitas vezes incapazes de dialogar entre si.

Tampouco a direita escapou desse esvaziamento. Faz falta o vigor intelectual de pensadores como Roberto Campos na economia, Miguel Reale no direito, Afonso Arinos de Melo Franco na política e Celso Lafer na reflexão liberal clássica sobre direitos e liberdades. A ausência desse pensamento estruturado — crítico, responsável e comprometido com o desenvolvimento nacional — abriu espaço para o oportunismo retórico e o pragmatismo sem princípios que hoje dominam boa parte do debate público.

Esse perda do sentido de nação também se manifesta no preconceito indiscriminado contra movimentos religiosos, especialmente os evangélicos, que representam parcelas crescentes da sociedade. Tratar com desprezo essas expressões de fé é ignorar sua relevância cultural, social e política. Em vez de aproximação, preferiu-se a caricatura. Em vez de diálogo, a exclusão. Assim, desfaz-se não apenas a possibilidade de alianças duradouras, mas o próprio tecido que poderia sustentar uma democracia robusta.

Nenhuma democracia resiste à erosão lenta de seus princípios. Não é a alternância de partidos que garante a liberdade, mas a adesão contínua a regras que limitam o exercício do poder. A democracia é um pacto — e pactos quebram-se não apenas com golpes, mas com o hábito reiterado de ignorar fundamentos.

O mais perigoso não é a audácia de quem despreza os limites — essa sempre existiu. É a tibieza dos que deveriam defendê-los. Um establishment que hesita em erguer a voz quando mais necessário. O jornalismo crítico e independente, a academia, onde deveriam florescer contrapontos com profundidade e argúcia, os intelectuais em suas reflexões públicas — todos parecem, em parte, ter renunciado à sua função essencial de vigilância.

Não se combate o arbítrio com arbítrio. Não se responde ao populismo com voluntarismo. Não se protege a democracia violando seus próprios fundamentos.

É nos momentos de maior tensão que se mede o compromisso real com princípios. E é neles que se torna inaceitável o silêncio ou a conveniência.

O Brasil ainda tem a oportunidade de reafirmar sua vocação republicana — mas não pela inércia. Democracias não se sustentam sozinhas: dependem da coragem dos que se dispõem a defendê-las não apenas contra seus inimigos declarados, mas contra as tentações sorrateiras que brotam no interior do próprio sistema.

A história é implacável com os ingênuos — e ainda mais com os cúmplices involuntários.