Israel

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Israel vive dias dificílimos. Quem de nós já não enfrentou um drama com cara de insolúvel? Ademais, pergunto: países têm alma? Têm. Assim como empresas e, se não parecer exagero, os animais. Um país é um organismo vivo. Criado há menos de 80 anos como âncora de uma história milenar, quem conhece aquele chão sabe que cada quilômetro foi forjado à base da força.

À época — e para alguns até hoje —, a vontade coletiva era chamada de determinação e resistência. Mais do que isso: de Esperança. E a maiúscula não é fortuita, pois denomina o hino que comove meio mundo.

Israel não sabe o que é ter vida fácil. Nesse ponto, é o epítome da história dos próprios judeus, seus fundadores. Embora não sejam os únicos condôminos, vale uma observação sobre eles.

Seja em Israel, seja na sua espraiada diáspora, poucas vezes os judeus encontraram paz e liberdade para florescer, fazendo amplo uso de seus talentos e vivendo de acordo com seus valores — que, de resto, pouco ou nada diferem daqueles caros aos demais povos “hospedeiros”, no usufruto do direito de ser como são. Muitos povos conquistaram isso sem alardear um feito. Mas com Israel foi diferente.

Quis o destino que nascesse como Estado no bojo do sofrimento dos judeus durante a Segunda Guerra e no contexto geopolítico que, então, configurou uma oportunidade na terra ancestral. Além dos galardões militares e, num período mais recente, científicos, havia um elemento surpresa mais prosaico: pegar um táxi e ouvir o motorista falar a língua sagrada estava longe de ser uma sensação banal — até para os goyim.

Não sou grande expert em Israel. Estive lá muitas vezes, a primeira há quase meio século — colhendo frutas em um kibutz da Galileia. O que é meio século senão uma sombra tênue refletida num colosso de milênios? Se não conheço o Brasil — só fui uma vez ao Norte, fato de que me envergonho, visto que rodei o mundo —, o que me faria dizer que conheço Israel? Ainda assim, vale fazer algumas considerações.

De 7 de outubro de 2023 para cá, após uma colossal cochilada de vigilância, uma fenda abriu uma rachadura na represa. Foi-se o prestígio. Foi-se a tranquilidade — na ausência de ter encontrado a Paz, outra palavra cara ao coloquialismo. Anos antes, para mostrar ao mundo que atribuía um valor exponencial à vida dos seus, Israel trocara um único soldado refém por mais de mil prisioneiros palestinos. A hipérbole cobraria um preço. A troca embutia a soberba do toureiro.

Entre insurgentes, assassinos e terroristas, foi como exponencializar o conhecimento individual e coletivo do grupo, absorvido em anos de prisão, onde se praticava a lógica do inimigo. Israel poupou Gilad da morte, mas lhe envenenou a sobrevida. Tudo isso é sabido. Quando o dique se rompeu num feriado de Simchat Torah (que ironia!), já se podia adivinhar o que viria: inclusive as acusações de uso desproporcional da força na inevitável retaliação.

Ora, se por um soldado usou-se a fórmula de 1 por 1000, a retaliação poderia vir na proporção de 1 vítima da festa rave por 10, por 20, por 40 vezes — por tantas quanto fossem necessárias para salvar a honra do Never Again. Por trás de tudo, a crise dos reféns. Incapaz de localizá-los em masmorras e túneis de uma área equivalente a Cabo Verde, em meio a uma população dez vezes maior que a do formigueiro holandês, até nisso Israel perdeu imagem.

Esperava-se mais deles. Ou, ao menos, menos coesão do outro lado. Mas os judeus sabem que o sofrimento estreita laços, dá senso de comunidade, de união. Nas trocas de reféns, a população de Gaza não dava o menor sinal de empatia. Israel conheceu então seu Vietnã. O que quero dizer? Seu prestígio despencou. E seus atos e omissões têm gerado uma onda de comoção mundial que angustia a maioria dos judeus, bons cidadãos do mundo.

Dias atrás, fui a uma livraria na Barra Funda, em São Paulo. No caixa, lia-se: “Por uma Palestina livre do sionismo”. Muitos judeus já absorveram que jamais serão uma unanimidade — nem nos piores momentos. Apenas dois anos depois do fim da Segunda Guerra, houve um pogrom em Kielce, a 160 km de Auschwitz. Como não esperar o pior, ainda contando com o melhor? Mas não estariam dando munição a quem mais os demoniza?

O que quero dizer aos não judeus é: não dificultem a vida de seus amigos judeus. Entendam que eles têm um amor fecundo por Israel, embora muitos já tenham perdido parte do orgulho fundador de décadas atrás. Como em toda família, é constrangedor dizer em público o que se comenta no aconchego do lar, entre amigos, nos clubes, nas sinagogas. Para eles, trata-se de proteger a família. É uma forma de escotismo.

Israel vem consertando um erro com outro há meses. Como certas pessoas que têm um dedo ruim para escolher parceiros, Israel vem escolhendo péssimos amigos e apontando falsos inimigos. Mas entende-se isso à luz da escassez de opções. Dias antes da eleição americana, Trump gozava de mais prestígio em Israel do que Biden, o presidente que visitou o país em guerra — e que pagou, eleitoralmente, por essa escolha.

Parte da diáspora também se empolgou com a truculência. Muitos cobram Trump por não ter cumprido a promessa de arrasar Gaza caso houvesse ainda um refém na Faixa no dia da sua posse. Isso lembra algo? Sim. Criticam Trump como os antijudeus (ser antissemita é outra coisa — inclui ser contra os árabes também, que isso fique claro) criticavam Hitler por “não ter levado sua missão até o fim”.

Dizem que o recrudescimento da guerra não se justifica à luz do número remanescente de reféns — que caberiam todos num ônibus, se vivos estivessem. E há vivos entre eles. O nó górdio está na liderança ignominiosa. Li The Netanyahus: An Account of a Minor and Ultimately Even Negligible Episode in the History of a Very Famous Family. Ganhou todos os prêmios, inclusive o Pulitzer de Melhor Ficção de 2022.

Por vias tortas, está tudo ali. Todos os países estão sujeitos a personalidades crapulosas. Quem somos nós para apedrejar o telhado alheio depois da opção eleitoral insidiosa de 2018 — o escárnio do escárnio? A escória pura. O mundo está nefando. O que aconteceu em 7 de outubro não sairá da historiografia judaica nem em 500 anos. O que decorreu disso maculou a imagem de Israel de forma inimaginável por bastante tempo.

Mas não se iludam: há luz. Por incrível que pareça, antes mesmo de Netanyahu acertar contas com a História, poderá haver paz com vizinhos — alguns de forma surpreendente. Não façam como o livreiro da Barra Funda. Não salguem as feridas. Nem obriguem seus amigos judeus — em público ou em privado — a fazerem mea culpa. Isso não integra o melhor do senso comunitário.

Até os professores estão em situação difícil. Articulam argumentos tortuosos. Desmerecem todo mundo. É um momento terrível para os ativistas judeus. Para os arrecadadores de fundos e para os formadores de opinião — expoentes e anônimos da kehilá. Muitos deles estão à beira do cinismo, por falta de escolha. Dizem que estão sendo usados pela indústria armamentista mundial como cobaias, obedecendo a comandos bestiais como autômatos.

E o Hamas? Está morto? Em minha longa vida — que nem é tão longa assim — vi o ocaso de organizações parecidas. Vivi na Alemanha quando o Baader Meinhof era quase um culto. Como tantos outros, virou farelo. Idem para Brigadas Vermelhas, IRA, Tupamaros etc. É óbvio que a virulência da ofensiva israelense — por mais seletiva que tenha sido — foi uma cirurgia grosseira e incompleta. Semeou o ódio onde havia indiferença e a indiferença onde havia simpatia. A chaga supura e fede.

Da Mauritânia à Indonésia, entre o mais de um bilhão de muçulmanos no mundo, o Hamas merece repulsa. Quem alimentou o leão para mantê-lo sob controle, teve o braço decepado. Melhor amputá-lo e regenerar o organismo. Mas não se iludam: Israel não é um país só de militares, gananciosos e fanáticos. A alma pode ter passado por mutações. Conheci pessoas próximas dos pais fundadores do país que, ao fim da vida, o estranhavam.

Mais precisamente depois da primeira ascensão do Likud — quando ainda não era moda que os judeus fossem vistos como de direita. Muito pelo contrário. O mundo judaico foi talvez a primeira formação nacional em rede, antes mesmo da internet. Quando o mundo respirava a Glasnost, poucos anos após a queda do Muro de Berlim, um judeu da direita religiosa matou Rabin alegando que ele era um nazista. Desse caldo nasceu Netanyahu. De borscht similar, Putin. E assim vai.

Não julguem seus amigos judeus pelos piores israelenses. E, por evidente, nem seria preciso repetir: que nenhum judeu aceite sequer a insinuação de que Israel esteja usando a fome como arma de guerra. Muito menos o fato.