Maquiavel

Maquiavel

Já lidei, em texto anterior, com o primeiro destes conceitos, que o velho Machado de Assis, elegantemente, define como uma homenagem que o vício presta à virtude. Mas fiquemos com a acepção dicionarizada: afetação de uma virtude que não se tem. Ou, mais simplesmente, uma falsa devoção.

Já o segundo, que abordo agora pela primeira vez, é entendido como velhacaria, ausência de princípios éticos, mas, essencialmente, como um conjunto de normas para conquistar e manter o poder político, com completa isenção de balizamentos morais.

Essas considerações me surgem ao observar o quadro político do nosso país nos últimos tempos.  São frequentes as condenações enfáticas a “qualquer tipo de censura” em manifestações públicas, as defesas inflamadas da “inteira liberdade de pronunciamento dos parlamentares”, o repúdio a qualquer tentativa de regulamentação das chamadas “redes sociais”. Tudo a pretexto da sagrada liberdade de expressão. Mas as coisas não são assim tão simples como parecem.

Deixo ao juízo dos leitores as homenagens à virtude e as artimanhas para escalar os píncaros do poder que podem ser deduzidas das atitudes que passo a comentar.  Até mesmo porque seus personagens são pessoas experientes, bem vividas na política, que talvez apenas não tenham plena consciência das implicações de seus gestos.

Comecemos pela questão da censura, cuja condenação incondicionada é, no mínimo, simplória. Pois ela existe, embora com o rótulo mais brando de “disciplinamento”, em qualquer ato da comunicação humana. Alguns exemplos: 1) Na televisão aberta não se permite, a qualquer hora, cenas de sexo explícito, incitações ao crime, proclamações de nazismo, ou de antissemitismo. 2) Há limites de volume de som para manifestações públicas. 3) O “bullying” nas escolas é reprimido e condenado. Portanto, est modus in rebus: a rejeição absoluta e incondicionada da censura, seria ela apenas ingênua, ou maliciosa?

Passemos ao segundo tema.  O bom entendimento do princípio constitucional da inviolabilidade dos parlamentares em  pronunciamentos no exercício de sua atividade não implica permissão para injuriar, caluniar ou difamar qualquer cidadão. Pois os artigos do Código Penal que tratam dos crimes contra a honra não foram revogados, nem explícita nem implicitamente, pela nossa Carta Magna: são anteriores a ela, e por ela foram “recepcionados”. Outro, portanto, é o sentido da saudável regra da livre expressão dos parlamentares. Pergunta-se: há mais alguma intenção, velada, na defesa cega das agressões sofridas pelos próprios companheiros dos parlamentares, e por autoridades dos outros poderes da República?

Finalmente, chegamos às “redes sociais”, cuja regulamentação vem merecendo a condenação de muita gente boa. E comecemos por explorar duas das suas características: a celeridade e a capilaridade.  Nenhuma outra forma de comunicação tem a velocidade das redes, nem a universalidade do seu alcance. O que leva à conclusão de que os crimes cometidos através delas – injúrias, calúnias, difamações e “fake news” – consumam-se instantaneamente. Punições posteriores serão inócuas: o mal está feito, e sem remédio. Por outro lado, se as administradoras das redes não assumem responsabilidade pelo que divulgam, temos uma situação abstrusa: uma prestadora de serviços indiferente, amoral, que faz pouco caso do que fornece: ouro ou lixo. E deveria ser assim mesmo? Se tudo em nossa vida social é regulamentado, por que as tais redes não podem ser?

Num esforço de compreensão do que parece constituir um conjunto articulado de falsas devoções, caberia a pergunta: cui prodest?  Não me parecem ser beneficiários de tais princípios os verdadeiros democratas. Uma boa prova disso tivemos recentemente, em um conclave na cidade de Fortaleza com a presença de próceres da nossa extrema direita, para que especialistas operadores das redes sociais ensinassem como usar seus recursos para fins político-eleitoreiros. Pretende-se, assim, aperfeiçoar o que já vem sendo feito, com resultados nem sempre positivos: há alguns processos em curso, e até condenações pelos excessos cometidos.

Em consequência da reação da nossa Suprema Corte – mesmo com as limitações do “status quo” atual – os falsos devotos agora ensaiam um ataque à distância, na perspectiva ilusória de mobilizar instituições externas ou internacionais para destruí-la.  Não percebem que tal desiderato é vão, pela estrutura do Supremo Tribunal Federal e pelo sistema como é composto. Que tem imperfeições, é claro, mas não difere muito de outros modelos, mundo afora. A não ser que se pudesse fazer aqui como na Venezuela, onde o ditador Maduro dissolveu o supremo tribunal do país e formou outro, só com os seus cupinchas, que avalizaram até uma eleição comprovadamente fraudada.

Uma última advertência: com uma hipotética conquista do poder pelos autoproclamados democratas, o que poderemos esperar?  Temos um caso próximo a nos servir de modelo, no nosso vizinho americano.  Vão-se as devoções liberais, evidenciada a sua falsidade,   e novos valores mais altos se alevantam: xenofobia, misoginia, chauvinismo, preconceito, desprezo pela ciência e pelas instituições republicanas… Quid rides? De te fabula narratur.

De minha parte, não vejo como não demonstrar apoio ao nosso Supremo Tribunal Federal, que, como instituição da República, merece todo o respeito em sua luta contra as falsas devoções e a ausência de regras morais dos que ambicionam o poder. Não cabem restrições individuais a alguns dos seus membros, ainda que criticáveis. A todos eles, com ênfase especial àquele que tem sido mais vilipendiado pelo seu protagonismo, prefiro dirigir a exortação de Rui Barbosa:

Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos!  O bom ladrão salvou-se, mas não há salvação para o juiz covarde.

Traduções das expressões em latim:

  • est modus in rebus – “há uma medida em todas as coisas”
  • cui prodest? – “a quem interessa?”
  • desiderato – “aspiração” ou “desejo”
  • Quid rides? De te fabula narratur. – “Por que ris? A fábula é sobre você.”