Primeiro diário do Pina do ano novo. Finalmente acabavam-se as festas? Não. O ciclo natalino encerra-se apenas no dia seis, Festa de Reis. Naquela madrugada do dia dois de janeiro, com nuvens escuras atrasando a chegada do sol, o único sinal de dia útil fora o canto de tenor do motoqueiro evangélico das cinco e meia. A quinta e a sexta feiras seriam dias meio vivos, meio mortos. Os escritórios e até os salões de beleza, tão ávidos de fechar o ano velho, ainda espichariam o recesso das festas. Na verdade, somente as ocupaçõeshard cumpririam aqueles dois dias úteis. Seriam inúteis ainda para muita gente.
A mulher do sétimo andar pensava, como era bom aquela quinta feira como um dia meio morto! O barulho dos motores na avenida Boa Viagem estava reduzido à metade. Fosse um dia útil?
De sua janela, onde escrevia espiando o mar, a mulher observava ao longe, porém com perfeita visão do que se passava, por já conhecer de perto, a saída da primeira jangada da manhã. Até os pescadores estavam em ritmo de recesso, saindo tão tarde e tão poucos. Ouvia o motor da jangada se afastando para mais longe, mais longe … até subsumir-se pelo dos automóveis, que costumavam chegar em grupos, do vermelho que os deixava presos por um tempinho no sinal de trânsito do Primeiro Jardim. No intervalo dos automóveis, ouviu ainda o motor da jangada, quando esta passou bem defronte de sua janela. Até que outra leva de carros engoliu de vez o motorzinho da jangada.
Em uma crônica publicada há mais de ano no bloco “momentear”, a mulher do sétimo andar já havia descrito em detalhes as rotas das jangadas. Preguiça de abrir o computador para reler, lembrar o nome das ruas e avenidas por onde circulam as jangadas que saem da praia do Pina.
Já eram 5:45 quando o sol começou a ganhar a luta diária contra as nuvens cinzentas de uma madrugada chuvosa de verão. Ainda de cara escondida, pintou uma larga tira brilhante, para realçar a dança em ritmo lento do mar de esmeralda esmaecida; sem o amarelo vivo do sol nu, que faria voltar a cor viva de esmeralda.
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Naia Alban, sobrinha de José Hamilton, baiana de quatro avós espanhóis, por laços de consanguinidade também sobrinha da mulher do sétimo andar, viera passar as festas no Recife com a tia. Reviveram juntas as delícias de um veraneio. Na praia do Pina, o banho de mar no Buraco da Velha. Na praia de Japaratinga, nas Alagoas, o paraíso. Nos dias ao léu, só interrompidos pelas infindas mensagens de Natal e Ano Bom, que naquele ano do século XXI já haviam abandonado de vez os correios e telégrafos (ainda existiriam telegramas?) para chegar em tempo recorde pelas ondas da internet. Só faltou, nesse veraneio, o bicho de pé, de uma coceirinha tão boa, como escrevera um dos descobridores da nação brasileira, Gilberto Freyre.
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Naquela quinta feira, dia dois de janeiro, as duas mulheres foram se despedir logo cedo do Buraco da Velha, pois a sobrinha voltaria naquele mesmo dia para Salvador, com uma imensa lista de providências prévias a um merecido pós-doutorado em Madrid, depois de duas gestões à frente da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. A pedido da tia, levou o celular para fotografar um elemento novo colocado pela prefeitura do Recife em cada barraca de praia, desde o princípio das festas. Já quase não encontraram nenhum em pé, destruídos pelas marés altas. Tratava-se de um cesto de lixo feito de papelão e sustentado por taliscas de madeira, em formato de triângulo, bonito, sem nenhuma serventia mais duradoura. Se houvesse de fato a intenção de reeducar as pessoas a colocar lixo no lixo, aí a conversa seria outra. Trabalho educativo, assim como o saneamento básico, não aparece para fazer propaganda.
2020 era um ano de eleições. Não existia, desde o século XX, casamento mais sólido e estável do que política e agências de publicidade. Irmãs siamesas. Num dos lados do triângulo constava a palavra e a logomarca da Klabin, que certamente entrou na engrenagem à custa de trocas, assim como os demais patrocinadores desses lixeiros de enfeite, destruídos em duas ou três marés altas. No segundo lado, outro trabalho de designer: dentro de um círculo azul encimado por coqueiros e um guarda-sol de praia, estava escrito, Praia Limpa. Logo abaixo, o nome, com as respectivas logomarcas, dos patrocinadores: Prefeitura; Klabin – Muito além da embalagem; Rede Globo – Realização. E no terceiro vértice do triângulo, num círculo maior, pintado em azul, rodeado de vegetação pintada em verde, qual um globo terrestre, lia-se, ao centro, com destaque: Aqui cabe um futuro mais sustentável.
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Veranear. A mulher do sétimo andar passara um mês do verão de 2016 em Lisboa, em lua de mel com Sebastião. Lá, aprendera uma palavra nova de nosso belo idioma, que os portugueses gostam tanto de reinventar: esplanadar. Significava perambular pelos bares ao ar livre à beira do rio Tejo. O verbo constava de uma publicação de divulgação semanal dos eventos da cidade. No curto veraneio colorido do sol nordestino, as duas mulheres também esplanadaram.
A mulher do setimo andar e a mulher das areias do tempo. Infindo.
Teresa, seu diário é uma crônica poética com a sabedoria vinda da sua sensibilidade.
Grande abraço