Barham Salih, o Presidente do Iraque, entrevistado três dias depois do assassinato do General Qasem Soleimani em Bagdá, não parecia preocupado com uma III Guerra Mundial. Já vive em zona de guerra, como resumiu: “Temos um conflito insensato no Yemen, sofrimento humanitário sem tamanho. Temos uma guerra que não terminou e conflito na Síria. Temos uma ordem estável no Iraque, muito frágil. E temos dúvidas sobre a segurança no Golfo. Temos remanescentes de ISIS [os terroristas do Estado Islâmico que querem reinstalar o califado] que não podem ser subestimados. Temos o enorme problema das famílias dos guerreiros do ISIS e dos detidos do ISIS, e isso representa monumentais problemas legais, morais e de segurança. E temos Idlib [uma província da Síria] com Nusra e Harras ad-Denn e muitos outros grupos extremistas.”[1]
“Ordem estável” no Iraque? Manifestou sua preocupação acima de tudo com a tragédia de mais um ciclo de conflitos no Iraque. A reconquista de territórios controlados por ISIS é recente e persistem as ruínas desde 2017 na região de Mosul. Há notícia de guerrilheiros do ISIS reagrupando-se nas montanhas no norte do Iraque. A rigor, depois de suas eleições em 2018, o Iraque não conseguiu formar um governo, nenhum partido é majoritário, e o Primeiro Ministro Abdul Mahdi, que finalmente tinha conseguido apoio tácito dos Estados Unidos e do Irã, renunciou depois das manifestações de novembro do ano passado contra o governo em Bagdá.[2]
O Presidente Salih, um curdo educado na Grã-Bretanha, apelou para calma e moderação (como fizeram, aliás, quase todos os governos, dos chineses aos europeus, russos incluídos). Lembrou os oito anos da guerra Irã-Iraque [1980-1988], que considera um marco no colapso da ordem regional: “Não há vitoriosos numa guerra. O custo humano para o Iraque tem sido monumental. Para o Irã também, por certo. A lição é nunca começar uma guerra, porque você não sabe como ela acaba. Outra lição importante: o Iraque jamais deveria servir como porta de entrada para outros.” Insiste que o Iraque não quer uma reprise da guerra com o vizinho Irã, com o qual tem uma fronteira comum de 1400 km, mas que não é fato que o Iraque aceita ordens do Irã.
Barham Salih lembra as legiões de desempregados jovens em seu país e vizinhos – terreno fértil para o recrutamento de ISIS, a necessidade de expandir a economia, o lançamento do fundo de reconstrução da infraestrutura: “Numa situação de conflito, não consigo imaginar investimento estrangeiro vindo para o Oriente Médio.”
Por outro lado, uma retirada atabalhoada das tropas americanas facilitaria o ressurgimento de ISIS. O massacre que foi a retomada de territórios iraquianos sob controle de ISIS (ou Daesh, na designação árabe), sem distinção entre culpados e inocentes, o horror das ruínas de Mosul, deixaram vivo o espírito do ISIS. A moção aprovada no Parlamento iraquiano em sessão extraordinária de 05/01/2020 pede que o governo estabeleça um cronograma de retirada das tropas americanas e demais forças estrangeiras. Isso ainda tem que ser assinado pelo Primeiro Ministro (administrativamente à espera de substituto, mas autor do pedido para que o Parlamento discutisse o destino das tropas estrangeiras) e tem que ser negociado com os Estados Unidos, que têm mais de 5 mil soldados no Iraque e agora decidiram enviar reforço.
Ainda não foram analisadas as consequências de romper o acordo de coalizão pelo qual as tropas estrangeiras estão no Iraque desde 2013 para treinar militares iraquianos e combater ISIS. Mas o Presidente Trump já tuitou que não sai do Iraque sem que os Estados Unidos sejam indenizados pelos bilhões de dólares que gastaram com a operação. Por ora uma nota da coalizão informou uma pausa nas atividades de treinamento e de combate ao ISIS, e as tropas estão agora concentradas em sua própria defesa.
A demanda de retirada das tropas americanas já era feita antes por grupos políticos ligados aos iranianos e obviamente é apoiada pelo Irã em sua estratégia de romper o bloqueio que o impede de exportar seu petróleo. Mas os movimentos de protesto de outubro e novembro de 2019 em Bagdá, que acabaram levando à renúncia do Primeiro Ministro Abdul Mahdi, rejeitavam tanto a tutela iraniana quanto a americana, acusavam tanto os serviços de segurança em Bagdá quanto as milícias pró-iranianas de terem assassinado ou ferido centenas de manifestantes.
No ataque de 2 de janeiro morreu não apenas o Gal. Qasem Soleimani, dos Guardas Revolucionários Islâmicos e comandante das Forças Qud, junto com nove outras pessoas, mas também um alto oficial iraquiano, Abu Mahdi al-Muhandis, sub-comandante das Forças de Mobilização Popular do Iraque, que lutaram contra ISIS e foram integradas ao exército iraquiano. O atentado não só reforçou a hostilidade à presença de soldados americanos como desviou a atenção dos protestos contra o governo em Bagdá.
Alguém, intrigado com o fato de o Presidente Donald Trump insistir tanto que o morto não era general, notou que é a primeira vez que os Estados Unidos matam um alto oficial de país estrangeiro desde que derrubaram o avião em que estava o Marechal-Almirante Isoroku Yamamoto em 1943. Segundo Steven A. Cook, especialista do Council on Foreign Relations (New York), “isso foi comparável ao Irã matar um alto comandante militar ou oficial do serviço de informações [dos EUA]”.[3] No sistema de relações internacionais e no direito internacional construído após a II Guerra Mundial, o que houve foi a invasão de um país soberano, o Iraque, entalado entre dois aliados que são inimigos entre si. Foram drones orientados de Washington, e os mísseis podem ter partido de bases americanas no próprio Iraque, mas equivale a uma invasão do território iraquiano sem consulta e permissão do governo do Iraque. Na legalidade internacional do pós-guerra, construído para que não houvesse mais guerra, um país não pode intervir em outro, se não for solicitado, sem uma resolução do Conselho de Segurança da ONU.
Há outros questionamentos legais decorrentes do comunicado oficial do Departamento de Estado, em que o argumento oficial dos EUA para a invasão do Iraque de 02/01/2020 reza: “A investida destinou-se a dissuadir futuros planos de ataque iranianos.” (“The strike was aimed at deterring future Iranian attack plans.”)[4]Discute-se no Congresso dos Estados Unidos se houve uma declaração de guerra sem consulta ao Congresso e se “futuros planos” justificariam uma invasão, pois a Administração ainda não detalhou a natureza dessa ameaça. A discussão sobre legalidade internacional intensificou-se depois que o Presidente Trump tuitou que entre 52 alvos para novos ataques americanos estavam lugares “importantes para a cultura iraniana”. Destruir sedes culturais é violação da Convenção de Genebra e crime de guerra. Fora que se assemelha a atos de ISIS. Quem não lembra o que houve em Palmira, na Siria, em que ISIS destruiu um templo muçulmano milenar?
É verdade que tampouco se pode invadir uma embaixada, pois cada embaixada é considerada território soberano do seu país. A embaixada dos EUA em Bagdá foi invadida na passagem do ano, o governo do Iraque aparentemente não impediu ou não conseguiu impedir a invasão, e o governo dos Estados Unidos afirmou que tal invasão, que chegou a danificar a seção de recepção, foi orientada pelo Gal. Soleimani. Líderes dos manifestantes que acamparam em frente à embaixada declararam que não havia a intenção de tomar a sede, e a manifestação era um protesto contra bombardeios dois dias antes contra depósitos e comandos que mataram 25 e feriram outros tantos militantes de grupos paramilitares de shiitas iraquianos que operam no Iraque e ocasionalmente na Síria. Pode-se ir longe nessa cadeia de ação e reação, violência e retaliação.
Há quem queira descartar essa discussão sobre a legalidade do ato de violência com um suposto argumento de “Realpolitik”, de que de qualquer modo não há lei no Oriente Médio. Mas será que nunca se tentará construir democracia em nenhum país do Oriente Médio? Já existem nuances nos autoritarismos da região. Não haverá algum dia uma nova Primavera Árabe que avance mais que as tentativas de 2011? Os democratas do mundo dos muçulmanos e persas não merecem alguma oportunidade de contestar seus governos? Quais as credenciais do “líder do Ocidente” para elaborar sua lista de “estados delinquentes” (“rogue states”)?
Difícil avaliar até onde pode chegar a escalada mais recente. A escalada já vem de décadas, não começou às vésperas do assassinato do General Soleimani. Se ficamos no século XXI, remonta à invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003 sob o argumento da existência de um arsenal de armas químicas, que não foi encontrado. Mais recentemente remonta à decisão do Presidente Trump de sair do acordo nuclear longamente negociado e finalmente aprovado em 2015, assinado entre o Irã e seis potências mundiais – Estados Unidos, Grã-Bretanha, China, França, Alemanha e Rússia. Por esse acordo, o Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA), o Irã aceitou uma forte limitação à sua produção de urânio enriquecido em troca de um alívio nas sanções comerciais. O Irã estava cumprindo o acordo e se submeteu a um amplo regime de inspeções internacionais. Os Estados Unidos romperam o acordo unilateralmente em maio de 2018, e passaram a intensificar as sanções ao Irã, mas os demais países, o Irã inclusive, mantiveram seu compromisso. Até que, em meados de 2019, o Irã começou a quebrar aos poucos os seus compromissos, alegando que não estava recebendo os benefícios que lhe haviam prometido no JCPOA. Com o assassinato do Gal. Soleimani há o perigo de que o Irã decida também rasgar totalmente o JCPOA.
Segundo o Secretário de Estado Mike Pompeo declarou na CNN no domingo 5 de janeiro “há menos risco hoje para as forças americanas na região em consequência deste ataque”. Difícil achar quem acredite nisso, sobretudo depois de acompanhar as multidões de centenas de milhares nos funerais dos mortos no atentado, transformados em mártires nacionais. A jornalista Robin Wright resumiu: “A fúria uniu setores discrepantes da sociedade iraniana, que apenas semanas atrás estava dividida por protestos de rua desafiando o governo em dúzias de cidades.”[5]
No Oriente Médio as forças americanas estão agora concentradas em sua própria segurança, uma pausa que favorece o reagrupamento de ISIS. E assim o aumento da insegurança não atinge apenas as tropas dos Estados Unidos e da coalizão de combate ao Estado Islâmico. O momento é perigoso não apenas para cidadãos americanos, que receberam do governo em Washington a recomendação de deixar países do Oriente Médio. O mundo ficou mais perigoso. E os perigos no horizonte neste momento são mais palpáveis que as consequências da guerra comercial EUA-China: o fim do acordo nuclear com o Irã, que poderá decidir construir sua bomba; a oportunidade e estímulo para o reagrupamento de ISIS, começando pelo Iraque; mais um passo na desmoralização da tese de que a presença dos Estados Unidos é um fator de estabilidade no Oriente Médio (já desmoralizada quando os Estados Unidos deixaram seus antigos aliados curdos na Síria à própria sorte contra tropas invasoras de Erdogan). E menos palpável, mas também muito triste, a perda momentânea de esperança de que forças democráticas e a pluralidade política ganhem espaço contra as teocracias, em Bagdá e em Teerã, e alhures no mundo árabe.
[1] Entrevistado pela jornalista Robin Wright, The New Yorker, 05/01/2019.
[2] aljazeera.com acessado 05/01/2020.
[3] cfr.org acessado em 05/01/2020
[4] defense.gov acessado 03/01/2020
[5] Robin Wright, The breathtaking unravelling of the Middle East after Qassem Suleimani’s death, The New Yorker, 06/01/2020
Previsivel e previsto: em 10 de janeiro o Primeiro Ministro do Iraque Adel Abdul Mahdi pediu ao Secretário de Estado Mike Pompeo “enviar representantes ao Iraque para estabelecer mecanismos para implementar a decisão do parlamento iraquiano” de que as forças estrangeiras deixem o Iraque. Bom lembrar que tais forças chegaram ao Iraque a convite do governo do Iraque como parte de uma coalizão anti-ISIS (os fanáticos religiosos que querem restabelecer o califado).