A Secretária de Cultura Regina Duarte caiu. Ficou pouco tempo no cargo. O bastante para sujar definitivamente sua biografia, que já não era assim tão rica. Nessa sua curta experiência, brigou com amigos, desrespeitou colegas, indispôs-se com a Imprensa, fechou as portas do seu antigo emprego, onde esteve grande parte de sua vida. Vai embora sem deixar saudades. Nesta minha longa vida de repórter, entrevistei a ex-atriz e ex- Secretária de Cultura, Regina Duarte, uma única vez. Aliás, Regina Blois Duarte, seu nome completo. Há mais de meio século atrás. Foi para a Revista Manchete, de saudosa memória, e posso afirmar, hoje, que se essa entrevista não tivesse acontecido, não faria a menor falta. Conversamos por mais de quatro horas, numa noite quente de outubro, na sobreloja do Hotel Savoy, na Av. Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro. Foi preciso muito esforço e muito suor para escrever alguma coisa que sobrevivesse por duas semanas, de tudo aquilo que conversamos. Não por culpa exclusivamente dela, mas também porque a frivolidade de alguns temas que a Manchete abordava contribuía para isso. Naquela época, Regina precisava muito mais da Imprensa do que a Imprensa precisava dela.
Vamos aos fatos. Regina Duarte, jovem, bonita, com um rosto expressivamente fotogênico, havia deixado uma emissora de televisão em São Paulo, onde iniciara sua vida artística, para trabalhar no Rio de Janeiro, na TV Globo, que, com suas novelas, começava a fazer sucesso nacional, e dar os primeiros passos para ocupar uma liderança , no horário, que haveria de persistir por muito tempo. Um ano antes, Regina participara do filme “A Compadecida”, rodado em Pernambuco, contracenando com o ator Armando Bogus, sob a direção do cineasta George Jonas que, ao longo do processo, tivera vários atritos com Ariano Suassuna, em cuja obra o filme se baseava. Ariano reclamava que o filme desvirtuava sua criação – e algumas cenas tiveram que ser refeitas. O filme, duramente criticado, foi também um fiasco de bilheteria.
Saímos, eu e o fotógrafo Milton Carvalho, da redação da revista, na Praia do Flamengo, para encontrar Regina Duarte no Jardim Botânico – não o famoso bairro carioca da Zona Sul – mas no próprio “jardim”, criado por Dom João VI, onde a atriz, no meio daquele mundo verde, filmava as primeiras cenas da novela “Véu de Noiva”. A pauta que me foi encomendada era medíocre, de uma pobreza franciscana: qual a formação da atriz, seu estado civil, sua família, como começara a carreira, como recebera as críticas ao filme “A Compadecida”, quais seus planos para o futuro, como via sua mudança de São Paulo para o Rio, embora ainda estivesse “morando” em hotel – e outras frivolidades.
Quando chegamos ao Jardim Botânico, as câmeras da TV Globo filmavam Regina Duarte contracenando com o galã da novela, e embora isso favorecesse Milton Carvalho, que não parava de fotografar a atriz, não me permitia, entre uma cena e outra, ter com ela qualquer conversa que durasse mais de três minutos. Era inviável uma entrevista naquele ambiente. E combinamos o seguinte: o fotógrafo continuaria seu trabalho, eu deixaria Regina em paz e, à noite, após as filmagens do dia, iria encontrá-la no Hotel Savoy, onde se hospedava. Por coincidência, o mesmo hotel onde fiquei nos meus primeiros dias de Rio de Janeiro, quando transferido da Sucursal de Pernambuco para a sede da revista.
Revejo com nitidez o quadro na minha memória: cheguei à recepção do hotel alguns minutos antes da hora combinada, identifiquei-me na recepção, subi para a sobreloja, onde ficava o bar, pedi uma bebida qualquer, e poucos minutos depois Regina Duarte chegou para nossa entrevista. Desceu do apartamento “cheirando a primavera”, o rosto limpo, sem maquiagem, um sorriso amigável, trajando um conjunto “jeans” azul, os cabelos ainda molhados e toda boa vontade para a nossa conversa.
E conversamos por algumas horas. Sobre tudo aquilo que estava na pauta e um pouco mais. Não se esperava, dessa entrevista, qualquer coisa mais politizada – não era a linha editorial da Manchete, nem celebridades do meio artístico tinham, ainda, maior envolvimento com questões políticas, que só começariam a crescer após o endurecimento cada vez maior do regime. Terminei a entrevista, agradeci, nos despedimos. Escrevi meu texto, a revista publicou, e nunca mais, em lugar nenhum, voltei a encontrar Regina Duarte. Guardei da atriz a imagem daquela noite, uma jovem simpática, cordial com a imprensa, que se transformou num dos nomes mais conhecidos da teledramaturgia brasileira. E que – como se nota – nada tem a ver com a medíocre Secretária de Cultura do Governo de Jair Bolsonaro, que se vai sem deixar saudades. Uma senhora ranzinza, radical, desrespeitosa com a memória de mortos e desaparecidos durante nos anos mais negros da ditadura militar. E servil ao chefe enquanto lá esteve, de quem aceitou com passividade todas as humilhações. Regina Duarte descobriu tarde que, em Brasília, valia muito pouco no tabuleiro do poder; e no mundo artístico, que os astros também têm crepúsculo. Ela estava “encostada” na televisão – que a mantinha sob contrato – porque envelheceu, não era mais “ a namoradinha do Brasil”. O seu rosto vincado e as marcas de cirurgias plásticas mostram que o tempo cobra sua quota, que nem toda atriz carrega com o tempo a dignidade de uma Fernanda Montenegro, para ficar apenas num exemplo.
A entrevista de Regina Duarte à CNN Brasil, que ela mesma encerrou de forma abrupta, já acabara de enterrar de vez o que ainda restava de sua triste biografia: a então Secretária de Cultura questionou a importância de manifestações públicas sobre a morte de nomes expressivos da vida cultural brasileira – entre eles Rubem Fonseca, Aldir Blanc, Morais Moreira e o seu colega Flávio Migliaccio – procurou superar a insensibilidade do “E daí?”, de Jair Bolsonaro, quando disse que “sou leve, estou viva, para que olhar pra trás?”, esquecendo que no exato momento em que demonstrava sua pequenez, o Brasil já tinha mais de 130 mil pessoas infectadas com a Covid 19, e registrava cerca de 11 mil mortos. Enquanto muitas famílias, isoladas, sequer conseguiam rezar para seus mortos a prece da consolação, Regina Duarte cantarolava uma musiquinha que lembrava os tempos mais duros do regime militar. Ela certamente, embora desempregada, vai continuar “leve e viva” – mas absolutamente rejeitada no meio onde fez fama e fortuna, quando ainda participava de manifestações populares, ao lado de personalidades políticas com perfil bem diferente daqueles pelos quais ela agora recentemente optou. Que pena. Que triste fim para essa “viúva alegre” do Brasil.
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Ótimo artigo, Mestre Ivanildo
Como tenho dito, do baú das “Memórias da Redação” ainda temos muita coisa boa
a esperar.
Aguardamos as próximas!
Os coleios da roda da História são sempre fascinantes!
Bom obituário do fim de uma carreira. Gentil, de um cavalheiro. Estou entre os que tiveram alguma esperança quando ela foi convidada, na esteira da demissão de um protonazista. Errei feio. Nunca vi alguém se humilhar de maneira tão patética como fez Regina Duarte em sua primeira e única entrevista no cargo, à CNN. Rastejante. Ou como fez na sua despedida sorridente e mentirosa nas cenas orquestradas e dirigidas pela fascistoide Carla Zambelli.
E que impressionante recorde de absurdos: só foi de fato demitida, cf. publicado no DO, 20 dias depois da demissão e filminho de despedida informado ao público.