Homem olhando através da janela – autor desconhecido

 

Dona Teresa mandou um vídeo. O tema é instigante. O vinho como caminho de vida. O vinho como apaziguador da alma. Frases de muitos famosos sobre o líquido dos deuses, faladas e decantadas no decorrer da história humana. Como disse um amigo, “Vinho é poesia engarrafada.”

Muitas frases me chamam a atenção no pequeno filme. Fazem ver como a sociedade deve muito a esse líquido. Como nos fez menos reféns de hipocrisias, tornou os desejos, as vidas, mais sinceras. Dentre as afirmações que escuto, um provérbio italiano se fixa em minha mente: “Uma barrica de vinho faz mais milagres do que uma igreja cheia de santos.”

A época é de isolamento. Uma breve abertura, atabalhoada, fez voltar a patamares insuportáveis os casos de contaminação. Novamente se prenuncia um isolamento rígido. Os negacionistas de plantão negam. As evidências mostram o oposto.

Nesse caos de informações, forma-se um consenso: os idosos devem ser confinados. Em outras palavras, são grupo que precisa ficar separado da sociedade, são grupo que tem que estar recluso, seu grau de risco é grande.

Lembrei de civilizações antigas, em que anciões que não podiam mais ser úteis, no trabalho, para a sociedade, eram isolados na espera de seu fim. Sociedades em que a racionalidade vencia o afeto. Caçadores e coletores eram a base de grupos nômades, aqueles que não podiam exercer essas funções, não tinham serventia. Portanto, nessa visão racional, um estorvo e um custo que não deveria ser absorvido pelo coletivo.

Também recordei os primeiros meses de Pandemia. Era rígido e sem concessões o claustro, o ficar isolado, principalmente para os de mais idade. Tudo era visto como um inimigo potencial. Um saco plástico que chegasse com compras deveria ser higienizado várias vezes e ficar de “quarentena” num espaço retirado por pelo menos três dias. Os alimentos deveriam ser lavados e novamente lavados. Sapatos e roupas não poderiam entrar em casa. O maior inimigo do homem era o próprio homem. Ninguém poderia se aproximar. A distância protocolar era de dois metros e deveríamos estar armados sempre, com um vasilhame de álcool gel em mãos. Nosso máximo mandatário não se apercebeu que isso foi a concretização de seu sonho de civilização bang bang, a pistola que separou os homens, que fez com que os amigos estivessem mais longe concretamente.

Acostumar-se à nova rotina se fez necessário. E, nesse novo espaço, novo conceito de vida, fugas se fizeram necessárias. Leituras, músicas, danças solitárias, hábitos de limpeza extrema, foram se incorporando. Rotinas foram criadas.

Às 11 horas, antes do almoço, um ritual foi corporificado. Necessário se fazia um aperitivo. Passava-se o dia pensando qual seria o acepipe escolhido e como seria acompanhado. Teria que ser servido em espaço adequado, acompanhado com música baixa e de boa qualidade. Teria que ter uma ambientação que permitisse sonhar com os espaços que frequentávamos antes, com as barras de bar que nos acolhiam para um papo amigo. Se possível, como não podíamos ter companhia humana, uma boa leitura para passar o tempo. Ajudava a tornar o dia mais agradável, o momento fazia com que o almoço fosse mais apetitoso, prenúncio de uma siesta reconfortante. Mas todo dia foi demais, por quase quatro meses.

Pouco a pouco, houve um relaxamento. Começamos a sair para caminhadas, com muita precaução, a ir a restaurantes abertos e muito bem higienizados. Voltamos, à distância, a ver os parentes queridos, o neto amado. Encontros para uma pizza ou um sanduiche foram permitidos. Até um café em final de tarde. A praia e boas caminhadas se tornavam possíveis. A aposentadoria aparecia como algo a ser vivido prazerosamente.

A imprudência de nossos concidadãos, as tresloucadas medidas de nossos dirigentes, o negacionismo exacerbado de fanáticos governantes, apontam para um recrudescimento da situação. Os indicadores numéricos apontam para níveis assustadores de volta de casos, de uso de emergências, de falta de leitos de UTI.

Temos quem se preocupe por nós. Nossos familiares começam a nos alertar. Com carinho, exigem a volta às “boas práticas”, ao ficar aposentado e isolado. Tristeza na mente, retorna tudo que foi passado nos meses críticos de maior incidência. Todos os cuidados, todas as restrições.

Mas também voltará a rotina. O prenúncio do almoço deverá trazer o aperitivo esperado. Com a ambientação adequada, com as regalias que o momento nos poderá dar.

Nesse sentido, lembro do vídeo de Teresa, que distribuí aos amigos mais próximos. E da frase lapidar de um filosofo guru, da qual me aproprio agora e será meu lema: “COM O PASSAR DOS VINHOS OS ANOS FICAM MELHORES”.