Não deixa de ser surpreendente que no Brasil de hoje exista quem tente reabilitar Stalin, enterrado há quase 70 anos. A imprensa deu relevo a posturas políticas minoritárias que atenuam as sequelas do stalinismo na antiga União Soviética. O filósofo italiano Domenico Losurdo, tido como promotor da recuperação, teria dado relevo em seus escritos às ações do regime em favor de melhores condições de vida da população soviética. Diante da tentativa de recuperação desse passado, convém lembrar o que significou esse período sombrio.
Em razão do caráter despótico e violento, a experiencia do comunismo soviético ruiu e não deixou atrás de si pedra sobre pedra. O regime atrabiliário entrou em estado de deliquescência de “per se”, rápida e inesperadamente, sem nos legar nada de expressivo em qualquer campo: artístico, cientifico, cultural, social e político. A sociedade soviética desapareceu em proveito daquilo que combatia. A ordem do capital chegou aclamada às ruas de Moscou.
A leitura do relatório de Khrushchov sobre os crimes de Stalin, documento extenso, explana a opressão e o terror do regime. Esse período é observado de sua própria entranha e não através de documentos da CIA. Em que pese o fato de responsabilizar o ditador, isentando, assim, o regime de culpa.
Porém, falar de stalinismo, sem integrar as ideias de Lenin, deixa a questão insuficiente. O stalinismo é a caricatura do leninismo levado ao extremo. Lenin funda um partido que julga ser guiado por leis científicas. Somente eles, os bolcheviques, conhece o sentido, a direção, os caminhos da História. Como acham que possuem as leis do materialismo histórico, apenas eles têm condições de conduzir o processo de libertação dos oprimidos. Acreditam que a história é determinada. Por essa razão, não há lugar para outras correntes de pensamento. Somente eles detêm o monopólio da política, não aceitam nenhum tipo de divergência.
Lenin defende o partido único. Aniquila não apenas as outras correntes revolucionárias, cortando a cabeça dos anarquistas, por exemplo, como proíbe divergências no interior de seu próprio partido. Inventa o chamado centralismo democrático, evitando, assim, divergências no interior do partido susceptíveis de contestar as decisões da direção visionária. A concepção leninista entende que a legitimidade do partido provém desse pretenso conhecimento das leis científicas que regem a História. A legitimidade, nesse caso, não é dada por algum sistema censitário, de escolha, de discussão e participação. Quem está fora do grupo dirigente deve acatar a sua decisão, suposta clarividente, caso contrário vira herege. Quem não está de acordo com as propostas dos conhecedores do caminho da História está simplesmente atrasando o processo de emancipação do homem e deve ser eliminado como contra revolucionário. Tese suficiente para instigar o terror contra qualquer tipo de oponente e gerar campos de concentração.
Depois da tomada do poder, Lenin propõe o taylorismo para a classe operária, enquanto que os chamados sovietes ficaram em silêncio. O operário deve apenas se ocupar de melhorar a produtividade do trabalho e racionalizar os processos de produção industrial, enquanto que os dirigentes esclarecidos se ocupam do resto. Quanto ao camponês, ele é tratado em sua obra com profundo desapreço, está condenado a desaparecer, e rapidamente, como de fato ocorreu. Alexander Chayanov pagou com a vida ao demonstrar que essa categoria social produz segundo uma lógica específica e milenar, diferente da lógica do capital, sendo impossível alterá-la em um passe de mágica da noite para o dia.
Onde se pretende homogeneizar ideias haverá sempre heresias. Para combater os desviantes, Lenin se apoia no serviço secreto e cria os campos de concentração. Impossível haver sanção contra a direção, ela não erra, infalível como o Papa. Toda pretensão ao universalismo termina em campos de concentração. Antropologia “dixit”.
Nessa lógica absoluta não há, portanto, necessidade de outros partidos, pois não saberiam conduzir o processo. Tampouco de alternar os dirigentes do partido único. Criou-se uma oligarquia que não pode ser mudada, fato que gerou uma sucessão de heréticos e purgas dentro do partido.
Alguns exemplos de atitudes do próprio Lenin dão a dimensão do grau de arbitrariedade de suas concepções, ainda no começo da revolução. A visão instigada pela certeza irrestrita chega às raias do absurdo. Lenin trata certas questões com detalhismo. Sem nenhuma autoridade para tal, nem provinda de fundamentos humanitários e éticos, mas de sua própria cabeça, sem consultar nenhuma instância colegiada sobre a pertinência do assunto, sem recorrer a nenhum princípio de justiça, a não ser, talvez, seu conhecimento das leis científicas que julga deter, ordena fuzilar prostitutas que serviam de repasto aos soldados nas frentes de batalha. Não porque eram pobres rameiras, ele pouco se incomodava com isso, mas porque transmitiam doenças e levavam o alcoolismo aos soldados, enfraquecendo as tropas revolucionarias. Da mesma maneira, trancado em seu escritório do qual emitia instruções, enviou ordens para enforcar 100 kulaks em diversas regiões e pendurá-los em lugares púbicos. Com o objetivo, afirmava, de provocar terror, mostrar à população do que eram capazes. Chegou a admoestar, por escrito, um militante do partido por ter sido complacente com pessoas que deveriam ter sido fuziladas. Defendia a aplicação do terror revolucionário.
Stalin e a direção do partido acentuaram e deram continuidade a essas concepções. Que levou, um exemplo dentre outros, a direção do partido único a executar 44 mil pessoas cujos nomes faziam parte de uma lista, sem maiores processos e julgamentos, entre outras barbaridades, como a deportação do dia para a noite de etnias inteiras. Aliás, Lenin escreveu mais de uma vez: “chega de papelada, fuzilem”.
Essa lógica chega ao paroxismo no interior do partido, em 1937. Dos 140 membros do Comité Central recém eleitos, 100 foram executados como hereges, enquanto que 1.108 dos 1.966 delegados do congresso foram presos e acusados de contra revolucionários, muitos fuzilados. Purga que alcançou o Exército Vermelho: 90% dos generais e 80% dos coronéis foram abatidos – soldados experientes que fizeram falta na heroica luta contra o invasor nazista. Sem falar nos milhões de mortos e prisioneiros. Dentre os membros do núcleo dirigente próximo de Stalin, Khrushchov foi um dos poucos que conseguiu escapar da degola. Saturno devora seus filhos.
Com a vitória da Revolução de Outubro outras correntes socialistas, com propostas libertárias, descentralizadoras, auto gestoras, chamadas de utópicas, ficaram opacas e perderam relevância.
Hoje, está difícil saber quem poderia nos indicar para onde caminha a humanidade. Talvez, ela vá para qualquer lado. Mas esperemos que seja possível evitar o sendeiro luminoso do determinismo que marcou o regime leninista. Esse período causou enorme prejuízo à construção de uma sociedade livre, justa, equitativa e solidária.
Tanto mais importante lembrar, pois nosso modo de vida atual não tem porvir. Até agora, o desenvolvimento sustentável é uma narrativa que pretende preservar nosso nível material de existência. A desregulação ecológica é uma dimensão nova que nunca foi prevista pelas correntes socialistas. O futuro deverá ter como premissa sociedades que pratiquem a sobriedade compartilhada, produzam e consumam o necessário e essencial, abandonando o supérfluo. Mas, a ecologia política não encontrou alternativas para as sociedades de crescimento na qual estamos inseridos. Não sabemos ainda como construí-la. Vasto programa a inventar.
PS
Fontes bibliográficas. François Furet: “Le passé d’une ilusion ; Relatório Khrushchov; novos livro sobre Lenin e Centenário da Revolução de Outubro: Dominique Colas, 2017; “Science Po”, Paris: “Les crimes em masse de Staline”; “Le livre noir du communisme”, obra coletiva, 1997; Robert Linhart, “Lénine, les paysans, Taylor” de 1976. Textos de historiadores: Stephan Courtois, Nicolas Werth, Jean Louis Margolin, Jean Elleinstein e outros.
Tomás Togni Tarquinio, Antropólogo (Paris VII), pós graduação em Prospectiva Ambiental (EHESS), consultor.
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