Mais uma nódoa na política externa dos Estados Unidos para Joe Biden examinar?
Houve uma invasão armada, nove meses atrás, e também foi bizarra, mas dessa não se sabe até hoje de repercussão em qualquer quartel do país invadido. Morreu na praia, em La Guaira, e os dois soldados americanos, Airan Berry e Luke Denman, que sobreviveram ao naufrágio e aos tiros dos guardas costeiros venezuelanos em maio, continuam presos e abandonados à sua própria sorte. Teriam confessado ser agentes do DEA, o órgão de combate à droga nos Estados Unidos, mas não se sabe de pedido do Departamento de Estado para que sejam soltos.[1]
Tampouco trouxeram novidades as eleições de 6 de dezembro. Segundo o noticiário, foram pacíficas. Mas com imprensa e TV controladas faltam informações precisas sobre como anda a vida na Venezuela na era da pandemia. Como previsto, Maduro ganhou o controle da Assembleia Nacional. Segundo o Conselho Nacional Eleitoral, que é nomeado pelo governo, o PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) e seus aliados tiveram 67,6% do voto, com um índice de abstenção extremamente elevado. Mais de 2/3 dos eleitores não foram votar. Medo de coronavirus pode ter influído, além da urgência de cuidar da sobrevivência, passando tempo demais na fila de alimentos, água, remédio, combustível. Faltou tempo para o posto eleitoral.
A principal razão, no entanto, pode ter sido simplesmente a falta de perspectiva de mudança. O líder de oposição Juan Guaidó e os partidos aliados a ele haviam decidido já em agosto não participar da eleição. Algumas vozes da oposição defenderam a participação nas eleições como forma de apontar as falhas da administração. Mas nem essas consideraram que seria possível um resultado justo sem que houvesse fiscalização internacional, que não houve. Países da União Europeia, convidados a enviar observadores, se recusaram, porque a campanha e o preparo das eleições já funcionaram como um jogo de cartas marcadas.
Entre as razões que tornam suspeito o resultado das eleições são apontadas alteração nos colégios eleitorais, interferência do governo e substituição de lideranças em alguns partidos, falta de garantia de que o voto fica secreto enquanto o racionamento e um sistema de distribuição de bens necessários básicos tornam eleitores dependentes do governo, o fato de que há pessoas presas por longo tempo sem motivos que possam ser sequer considerados razoáveis, a suspeita de espionagem de vizinhos pelos chamados “coletivos” e, finalmente, o baixo comparecimento, que opositores mais radicais deram como 15% do eleitorado.
O Presidente Maduro, depois de haver conseguido desmoralizar perante a opinião pública a rocambolesca “invasão da Baía dos Porquinhos”, atribuindo-a ao governo Trump, ao cartel das drogas e a oposicionistas liderados por Juan Guaidó, anunciou em 31 de agosto que concedia perdão a mais de 100 opositores políticos. A lista bastante heterogênea não incluiu oposicionistas importantes como Leopoldo Lopez, não alterou a condição dos que são prisioneiros políticos ou refugiados em embaixadas ou no exterior, nem permitiu que fossem candidatos. Se pretendia ser entendida como gesto de boa vontade para com alguns dos oposicionistas apoiados pelos Estados Unidos, não incluiu os seis executivos da Citgo Petroleum Corp., uma subsidiária da PDVSA com sede nos Estados Unidos, presos há 3 anos. Os chamados Citgo6 (5 cidadãos americanos e um residente nos EUA) se declaram inocentes, foram vítimas praticamente de numa cilada, chamados para uma reunião técnica na PDVSA em Caracas em 2017 e aí presos desde então, só agora levados a processo sob acusação de corrupção.
Guaidó e seus aliados, ainda que não tenham se desvencilhado de todo da suspeita de haverem apoiado a empreitada mercenária que afundou em La Guaira, receberam com ironia o perdão de Maduro. Perdão por crimes que não cometeram? Fato é que não ajudou em nada a atenuar a suspeita sobre a vitória de Maduro nesta eleição de dezembro. Maduro que, ao declarar vitória, não omitiu referência velada à diferença de estratégias oposicionistas: “Ganhamos com votos e triunfamos sobre a oposição maligna.” A maligna não se submeteu a votação.
O resultado da eleição certamente enfraquece Juan Guaidó, que vê afundar mais uma das suas estratégias. Claro que o governo não vai convocar agorinha novas eleições. E para Guaidó, que já não será mais Presidente da Assembleia Nacional, fica ainda mais complicada a charada de direito internacional que é reconhecer como Presidente de um país alguém que não tem o controle do território desse país. Essa inovação do direito internacional não passou na ONU, onde o governo Maduro continua ocupando o assento da Venezuela e onde nunca foram aprovadas sanções contra a Venezuela.
Difícil afirmar hoje quanto resta do prestígio de Guaidó na Venezuela, comparado com o seu auge quando se autoproclamou Presidente da Venezuela em janeiro de 2019. Seu grupo desde o início foi contra participar na eleição. Apesar de sua bravura pessoal e da advocacia incansável em favor de que todos os países reforçassem o boicote econômico à Venezuela, Guaidó não conseguiu enfraquecer o domínio de Nicolas Maduro.
Os Estados Unidos chegaram a reforçar o embargo, que nunca chegou a ser total, pois algumas compras de petróleo resistiram. Porém Maduro desde o início conseguiu pintar Guaidó como títere de Trump e dos Estados Unidos e assim não teve impacto a promessa de anistia aos militares que fez Guaidó de início, esperando a adesão deles contra Maduro. Uma promessa que não oferecia a menor segurança e não funcionou. Mesmo em negociações sob os auspícios do governo da Noruega nunca ficou claro como ficaria a situação dos militares com a eventual saída de Maduro.
Igualmente foi muito triste o resultado da tentativa, coordenada por Guaidó, de levar ajuda humanitária diretamente à população venezuelana. Maduro sempre exigiu que a ajuda humanitária fosse distribuída pelos canais governamentais, mesmo a ajuda das Nações Unidas. Mais uma vez Maduro ganhou a batalha da propaganda, os venezuelanos orgulhosos não seriam miseráveis a correr por esmolas, que nem foram tão grandes, não davam para todos, e o fato é que a maioria da população não se deslocou para as fronteiras externas do país para pegar os carregamentos de USAID e outros orgulhosa e violentamente impedidos pelo governo de entrar no país. Concretamente pouco entrou, houve vergonha e tristeza, e mal foi arranhado o poder de Maduro e companhia.
Sobrou como principal marca política de Juan Guaidó a sua campanha ao redor do mundo para apertar o embargo econômico à Venezuela. A ponto de lutar em Londres para que o Banco da Inglaterra não permitisse ao Banco Central da Venezuela resgatar suas reservas de ouro depositadas em Londres. Nem quando Maduro ofereceu receber tais reservas na forma de um programa de ajuda do PNUD. Será que Guaidó tem alguma informação privilegiada, sabe de algum embargo que tenha levado mudança de governo a um país? Não bastava olhar ali perto para Cuba, onde o embargo americano sempre ajudou a parte mais autoritária e estatista de cada administração cubana? Além de que Maduro conseguiu convencer boa parte da população venezuelana de que a miséria no país se deve ao bloqueio americano. Uma parte dos idosos por certo recorda um período de bem-estar no comecinho da primeira eleição de Hugo Chavez, no tempo dos altos preços do petróleo. O líder oposicionista Juan Guaidó, concentrado na defesa de sanções à Venezuela, sequer se deu ao trabalho de explicar que foi o gradual endurecimento do controle estatal da atividade econômica que foi empobrecendo o país e provocando inflação cada vez mais alta.
Durante a pandemia o povo venezuelano tem sofrido duplamente, pois nos últimos anos os venezuelanos haviam ficado cada vez mais dependentes de remessas e ajudas da diáspora venezuelana. Isso até reforçava a dolarização da economia. Com a pandemia e seu impacto nas economias dos países que abrigam refugiados da Venezuela, em particular a Colômbia, muitos deles perderam seus empregos precários e não tiveram como remeter dinheiro para seus parentes. Muitos milhares de emigrados venezuelanos que perderam sua subsistência não tiveram outra opção que voltar para suas cidades de origem na Venezuela, passando antes por galpões de quarentena perto da fronteira. Não se conhecem as verdadeiras dimensões desse retorno à pátria, assim como são imprecisos os números para o total de venezuelanos no exterior, que podem ser 4 milhões ou 5 milhões. Mas já circularam números como uma redução de 400 mil no número de venezuelanos no exterior, em particular na Colômbia e outros países próximos. Assim, não só o bloqueio americano, mas também a pandemia, ocultam a inépcia do governo e a tirania.
Os Estados Unidos e os países da América Latina reconhecerem ou não a vitória de Maduro não muda o quadro na Venezuela. Esperemos que o colombiano Álvaro Uribe, com sua ampla experiência, consiga convencer o ainda jovem político Juan Guaidó de que sua última estratégia fracassou, mais uma vez. Como está, é apenas “personagem triste” (na análise bastante sóbria da farsa eleitoral feita por um professor da Universidade Simon Bolivar, Erik del Bufalo, entrevistado por O Estado de S. Paulo (08.12.2020, p. A11). Às vésperas das eleições deste dezembro, o ex-presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, em longa entrevista ao Financial Times (04.12.2020), resumiu a situação: “Infelizmente a ditadura na Venezuela se estabilizou” e um dos motivos da sua resiliência é que “as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos não funcionaram”. Que a nova administração americana, com Joe Biden e Kamala Harris à frente, consiga reconhecer que o povo venezuelano já sofreu demais, e que mudanças de políticas de governo para reduzir o sofrimento econômico e político só podem ocorrer por negociações não só entre governo e os diferentes grupos de oposição, mas se envolverem também a comunidade internacional e os países que apoiam mais abertamente o governo Maduro, como China, Rússia, Iran, Cuba, Turquia. A declaração de Mike Pompeo para que não se reconheça a vitória de Maduro, por tudo o que já foi explicado, apenas consolida o poder da ditadura.
[1] Examinamos essa invasão aqui na “Será?” de 5 de junho de 2020 em “Venezuela: dois presidentes e uma invasão rocambolesca”
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