Casarão da 2, rue de Saint-Simon – 75007, Paris.

 

Eu tinha completado 15 anos há apenas 3 meses e nunca tinha morado só. Chegando a Paris, meu primo me deu um intensivo, sob forma de um reconhecimento de terreno. Ensinou-me a circular de metrô, me levou para conhecer umas poucas atrações de cartão postal e me apresentou à Madame Houssay, nossa anfitriã e benfeitora, dona da casa magnífica onde estávamos – ele em residência permanente, eu em temporária. Ela me convidou para almoçar no dia seguinte para nos conhecermos. Devia ter mais de 80 anos naquele 1973, mas era disposta e andava com firmeza, nada tendo a ver com as demais octogenárias que eu tinha visto até então. “É que ela sobe as escadas do metrô todo dia”, explicou meu primo. Éramos três à mesa: eu, ela e uma senhora. Virando-me para a outra, fulminei. “Você é irmã de Madame Houssay?” Ela negou. “Non, je suis sa fille.” Ou a mãe estava bem demais ou era a filha que estava desgastada. O que sabia eu dessas coisas? Nem me ocorreu que pudesse ter cometido uma gafe. Importante é que elas pareciam se divertir. “Você fala francês melhor do que meu neto”, disse a matriarca. Era para me dar uma força, mas levei o elogio a sério e resolvi rebuscar. Por pouco não perdi a espontaneidade com tanto floreio, com tanta invenção de tempo verbal. Durante o almoço, aquela dama aristocrática e simples perguntou o que eu estava achando da comida. Era um medalhão mal passado com purê de batata e vagem. “Délicieux”, menti. Ela me serviu de mais um pedaço e depois complementou. “É carne de cavalo. Nós a preferimos porque é mais magra do que a bovina. Coisa de velho, vamos admitir.” A informação não me animou, mas comi até o fim.

O vinho era um Côtes-du-Rhône e ainda hoje sou-lhe fiel. Depois de perguntar sobre minha família, de servir o café na sala de estar e de dizer, bem humorada, que não gostava que o neto fosse militar, o que ela achava inadequado a um bom cristão, ela então me comunicou que viajaria para Chambéry no dia seguinte. “Fica perto da Suíça. Precisamos de ar fresco nessa temporada. Mas espero que Paris lhe traga alegrias e que ainda esteja aqui quando eu voltar.” E me deu de presente um livro de fotos da cidade que tenho até hoje, chamado “Paris des rêves”, em capa dura, de Izis Bidermanas, em que a cada imagem corresponde um texto inspirado de um escritor francês. Eu lhe dei um cinzeiro de pedra de sabão que mamãe tinha comprado num mercado de artesanato. Ela pediu que eu dissesse o que era aquele material tão interessante quanto pesado. Sapequei uma explicação, alegando que era uma pedra nobilíssima, de Minas Gerais. Que um de nossos escultores tinha feito com ela obras monumentais. Não sabendo explicar direito quem foi o Aleijadinho, e muito menos discorrer sobre sua alma complexa, simplifiquei dizendo que era uma espécie de Quasimodo brasileiro. Ela fez uma cara de espanto. “Um Quasimodo sem igreja nem Esmeralda, a senhora entende? Mas muito talentoso.” Ela terminou achando que o cinzeiro tinha sido feito por ele, e resolvi deixar a impostura como estava. Aprendi daí a evitar ser prolixo, a moderar nas digressões, mas nada garante que o tenha conseguido, quase meio século mais tarde. Gentilmente, ela colocou-o num aparador da sala, e examinou-o à distância, como se fosse a peça mais valiosa da casa. Ela era mesmo a aristocracia como eu imaginava.

Meu primo depois disse que também estava de viagem marcada. “Vou para Louvain, na Bélgica. Minha noiva mora lá. Não diga nada a seus pais para não acharem que te abandonei. Pelo que vi de você, tudo vai correr bem. A casa agora é sua. Mas cuidado. Não traga visitas, não perca a chave e se o telefone tocar de madrugada, atenda. Eles desligam logo que você o tira do gancho. São só ladrões que querem arrombar as casas. Especialmente esta que está cheia de quadros. Madame Houssay é sobrinha-bisneta de Madame Récamier. Os vigaristas sabem que aqui tem cartas de Chateaubriand de próprio punho. E outras relíquias. Não se preocupe se eles entrarem e se você estiver aqui porque ladrão em Paris não mata feito no Brasil. Aqui tudo é feito com elegância. Eles podem te lacrar a boca com esparadrapo, amarrar tuas mãos, te fazer tomar um sedativo e vedar teus olhos. Mesmo não sendo fatal, não é agradável. Por isso que você deve deixar sempre uma luzinha acesa em algum quarto. Alterne de abajur todo dia para confundir os ladrões. Como é alto, pode deixar uma janela aberta. Eles ficam sempre espiando lá de baixo, às vezes até de binóculos. Tudo muito profissional. São pessoas insuspeitas, de terno e gravata, disfarçam-se até de padre. Está claro? Agora fique tranquilo. Não falte às aulas na Sorbonne, não gaste dinheiro com supérfluos, e evite entrar nos cafés, onde tudo é muito caro. Não diga a outros brasileiros onde eu moro e não fale de nossa família. O que tem de informante de milico por aqui é um absurdo. Até no meio universitário brasileiro a gente tem dedo-duro. Isso dito, divirta-se e relaxe. Combinados?” Sorri amarelo.

Na noite seguinte, eu já estava só. Havia luz solar até tarde, é verdade, mas o casarão imenso parecia um castelo mal-assombrado. A campainha do telefone era estridente a qualquer hora. Mesmo de dia era assustadora. Quando escurecia, eu iluminava a sala e os olhares daqueles quadros a óleo me acompanhavam a cada movimento. Eu acendia o abajur, mexia nas cortinas e espiava pela janela. Quem estivesse passando pela calçada era suspeito de ser um ladrão de obras de arte. “Tem um quadro aqui de Madame de Staël que vale a casa toda”, ele disse. Mas eu tinha que ser forte, precisava me superar, pensar sempre no que faria 007 no meu lugar, se o inevitável acontecesse. Eu tocava a vida, apesar do frêmito que sentia quando a noite caía. Quando o pessoal da Sorbonne perguntava onde eu ficava, eu inventava um lugar longe, lá pelos Champs-Elysées, algo que fosse fora do meu circuito. Um dia eu já dormia quando ouvi barulho na sala. Pé ante pé, olhei do corredor e vi luz e uma sombra, como se alguém estivesse se espreguiçando. Era o tal ladrão. Eu já me via amordaçado, depondo na delegacia sobre o incidente, tentando provar ao comissário que eu era inocente, que tinha tentado resistir, mas que os bandidos tinham sido mais hábeis. Precisava enfrentar a realidade. Teria tempo ao menos de pegar uma faca na gaveta da cozinha? Deveria abrir a janela e pedir socorro, fazer um estardalhaço? Ou isso só iria piorar a situação? Deveria tentar negociar para emboscá-lo num momento de descuido ou seria mais prudente tentar engabelá-lo com um cinzeiro de pedra de sabão, que depois poderíamos repor? Então caminhei até a sala com a altivez que pude, temendo aparentar medo.

“Qui êtes-vous?”, perguntamos ao mesmo tempo, um olhando para o outro com um ar de indignação, como dois machos-alfa que se medem e fingem desprezo um pelo outro antes de se pegarem aos murros. “Eu moro aqui, monsieur”, rebati. Ele parecia surpreso. “Ici? Vous?” Na cadeira, vi um uniforme militar. SNI? DOPS? Com essa eu não contava. Será que queriam fuçar na papelada de meu primo? Nem na França eles não nos deixavam em paz? Tudo era possível. Se eu tinha 15 anos, ele talvez tivesse 22, mas a altura era a mesma. Ele tinha um bigode à la De Gaulle e era mais forte do que eu. Então um esgar lhe riscou a boca. “Vous êtes de la famille de Luciano?”. Como aquele escroque sabia até o nome do meu primo? Por outro lado, a ser verdadeira minha tese, como é que ele não sabia, se o intuito era político? Pensei em negar que houvesse algum Luciano ali. Mas o bandido me estendeu a mão. “Eu sou Denys, neto da Madame Houssay.” Deveria retribuir o cumprimento? Será que ele me daria um golpe de judô para me imobilizar e fecharia minha boca com fita isolante? Ele insistiu com a mão no ar. Fraquejei. “Ele é meu primo”. Ele sorriu. “Desculpe, eu deveria ter avisado. É que minha avó me deu uma chave para dormir aqui quando venho à capital. Lembro que ela disse alguma coisa sobre sua vinda há algumas semanas.” Então apertei-lhe a mão aliviado. Acho que minhas pernas tremiam. Eu escapara por pouco de ser culpado pelo roubo do século. Abri o coração e contei a história dos quadros. Ele riu com gosto e disse que não era exatamente assim. “Há um certo exagero do seu primo. Amanhã viajo cedo, durma tranquilo.” Passei uma noite serena, sabendo que não estava só.

Pensei em tudo isso dia desses enquanto contemplava o casarão mítico – um dos tantos labirintos de sonho onde me perdi e cuja saída nem sempre consegui achar.