Old woman selling eggs – Painting by Hendrick Bloemaer (1632).

 

Em meio à fome que, infelizmente, volta à mesa do brasileiro, o ovo também volta a ocupar um lugar de destaque no prato da maioria da população. E volta barato, pois a produção e a oferta têm subido. Ai de nós sem as galinhas pátrias que cumprem com seu dever. Em várias cidades os ovos voam motorizados até à porta das casas: é o carro do ovo, que cacareja como uma galinha elétrica além de razoáveis decibéis. Tenho ganas de atirar uns bons ovos nesse carro do ovo que polui sonoramente o dia, um carro monocórdico que parece querer nos hipnotizar com seu refrão que se repete além do necessário.

Abro o “Estadão”, melhor, não abro, acesso o jornal de domingo e me deparo com a notícia de que o Brasil tem um “rei do ovo”. Pelo jeito, é um predestinado. Vejam seu nome: Leandro Pinto. Que outro não é, fico sabendo, senão o dono e fundador do grupo Mantiqueira, o maior produtor de ovos da América Latina. Diz a matéria que, quando jovem, “fazia de tudo, só não gostava de estudar”. Pinto talvez intuísse que um dia só os ovos lhe bastassem e teria que estar junto dos seus. Pois bem, com dedicação e esforço, assumiu o que viria a ser a sua galinha dos ovos de ouro: umas 25 granjas de um amigo que não mais podia tocar o negócio. Enfim, príncipe dos ovos, e, hoje, incontestável rei.  O título lhe cai bem, pois os números e proezas do seu reino são pura nobreza: tem unidades de produção em Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso e emprega 2,3 mil funcionários. Deixo de propósito o número maior para o final, pois se trata do número das suas galinhas poedeiras: nada mais, nada menos que 11 milhões de galinhas! Meu Deus, parece que o homem é dono de todas as galinhas do planeta! Um mar de galinhas, um branco oceano de ovos! O empresário Pinto que, quando pobre, viajava num velho Uno, hoje voa, não como galinha, pois voa bem e voa rápido no seu jatinho particular. Deus o aumente, embora o País corra o risco de ser povoado apenas por galinhas…

Deixemos Pinto, voltemos ao ovo. Aliás, pisando em ovos, ou melhor, não pisando, porque o tema é sensível e delicado. Até diria: é lírico. Quem melhor percebeu isso foi a agora centenária Clarice Lispector. A incrível Clarice trouxe o ovo para dentro da literatura brasileira. Pôs o ovo no prato imenso de sua sensibilidade e ficou a olhá-lo, contemplando-o como inevitável evento filosófico. Também trouxe a galinha, claro, mas sem o lugar-comum da pergunta “Quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?”. Pois bem. Clarice ousou e criou o texto “O ovo e a galinha”, que inseriu como um conto no seu livro “A imitação da rosa”. Não parece conto, mas uma página de Heidegger. A quem tiver apetite filosófico-literário, aconselho a saborear esse texto clariciano. Aqui vão, sem muita ordem, mas como ovos bem selecionados, algumas sentenças da escritora em torno do ovo.

“Só vê o ovo quem já o tiver visto. — Ao ver o ovo é tarde demais. […] O ovo não tem um si mesmo. Individualmente ele não existe. […] Ao ovo dedico a nação chinesa […] O que eu não sei do ovo é o que realmente importa […] Ovo é a alma da galinha. […] O ovo me vê. O ovo me idealiza? […] De ovo a ovo chega-se a Deus […] O ovo é o sonho inatingível da galinha.”

Comentemos, trazendo do prato de Clarice o ovo para os pobres dias atuais. Sim, ela tem razão, é preciso dedicar a nação chinesa ao ovo, pois a China é grande parceira comercial do Brasil, embora tão achincalhada por alguns próceres nacionais. Sim, tudo indica que individualmente o ovo não existe, sobretudo agora quando o país se afoga em ovos. Clarice sugere que os ovos são olhos: eles nos veem; sim, e alguns veem até demais e voam certeiros em direção à cabeça de políticos (este também, bom que se diga, um papel social dos ovos). Não sabemos se “De ovo a ovo” chega-se a Deus num transe místico, mas chega-se a matar a fome dia após dia, o que também eleva a alma. Por último, se o ovo “é o sonho inatingível da galinha”, por ora é o sonho atingível do pobre, e isso é grato quando a fome deixou de ser zero e geladeiras e estômagos estão vazios.