Estou lendo um livro de crônicas do escritor cubano Leonardo Padura, escritas entre 2008 e 2010. Chama-se La memoria y el olvido (2011). O livro é saborosíssimo, faz pensar sobre vários temas e assuntos. Padura é um mestre da escrita e tem sacadas brilhantes. Com independência crítica invejável, reflete sobre a situação de Cuba, sobre as relações de seu país com os EUA e a Rússia, sobre o modelo cubano, o mundo, a vida.
Uma das crônicas reflete sobre a “vergonha alheia”, que Padura define da seguinte maneira: “Ainda que não seja tão dolorosa e previsível como a vergonha própria perante uma atitude ou ideia desatinada, a vergonha alheia tem proporções dramáticas e geralmente se manifesta quando assistimos ao comportamento vergonhoso, ou lamentável, de uma pessoa que, com ou sem consciência (pior é quando o faz com), comete um ato que nos obriga a sentir uma incômoda vergonha pela situação na qual caiu nosso congênere”.
No Brasil dos últimos anos temos um elenco enorme de comportamentos que se encaixam como uma luva na ideia de “vergonha alheia”, situação muito mais comum do que a gente imagina à primeira vista. Foi o caso, por exemplo, do jogador Neymar quando flagrado em atitude pouco educada com uma modelo que ele convidou (e pagou) para visitá-lo em Paris. Ou do também jogador Ronald Fenômeno ao ser visto em um motel com travestis. Mais recentemente, o jogador Gabigol foi pego embaixo de uma mesa num cassino clandestino em São Paulo, tentando se esconder da fiscalização. Estava, além do mais, sem máscara.
Todas foram atitudes que geraram forte sentimento de “vergonha alheia”.
O elenco fica gigantesco quando passamos para o terreno político. Parlamentares fantasiados com roupas regionais, tropeçando nas palavras e na língua portuguesa, agradecendo a Deus e homenageando a mãe, a esposa e os filhos, gritando palavras de ordem e palavrões, são personagens que frequentam o Congresso Nacional e muitas Assembleias Estaduais e Câmaras de Vereadores. Há muitas honrosas exceções, mas a média é basicamente essa.
Essas são atitudes que mostram o baixo nível cultural dos parlamentares brasileiros e a facilidade com que desrespeitam protocolos e códigos de conduta, com a intenção deliberada de posar para fotos e ganhar um destaque que não teriam de outro modo. Deve estar fresco na memória de todos, por exemplo, o festival de condutas “esquisitas” durante a sessão que decidiu o impeachment da presidente Dilma.
Agora, temos a CPI da Covid, entendida como um recurso parlamentar importante, que deve ser levado a sério, no mínimo pelos efeitos explosivos que pode ter na vida nacional. O modo como o Congresso Nacional recebeu a aprovação e a instalação da Comissão pelo Senado foi evidentemente plural. Houve quem aplaudiu e quem lamentou, quem comemorou e quem se preocupou. Entre os que lamentaram, alguns não só exibiram uma raiva despropositada como buscaram torpedear a iniciativa parlamentar. As oposições viram nela uma oportunidade para esclarecer a opinião pública e o governo tremeu nas bases, temendo o que a Comissão pode causar em termos da imagem que a gestão Bolsonaro tenta vender para a população.
Foi então que a vergonha alheia se manifestou de forma intensa e concentrada. Iniciados os trabalhos, com os depoimentos dos ex-ministros Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, os senadores governistas integrantes da CPI capricharam em comportamentos vergonhosos e lamentáveis no afã de defender o governo e descaracterizar a comissão. O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), Ciro Nogueira (PP-PI), Marcos Rogério (DEM-RO) e Eduardo Girão (Podemos-CE) não se limitaram a defender o governo. Foram além: mostraram rara sabujice, abrindo mão de manifestar opinião própria e aceitando ler as “colas” que lhes preparou o Palácio do Planalto. Intervieram com as mesmas palavras, com idênticas intenções, repetindo explicações incansavelmente para marcar posição. Foi patético e constrangedor, para dizer o mínimo.
Não ficou de fora o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, um médico que se negou a opinar sobre fatos tão estratégicos como o “tratamento precoce”, escudando-se em “questões técnicas”, portarias e procedimentos alegadamente exigidos pelo ministério que dirige. Tergiversou o quanto pôde, incentivado pela tropa governista. Pareceu estar incomodado com a posição que ocupava, um dos fatores mais claros que nos leva ao sentimento de vergonha alheia.
O governo tem perdido todas as batalhas pontuais já travadas na CPI. Desarmados de argumentos plausíveis, seus defensores não conseguem defender o indefensável, optando por criar tensões, fazer propaganda política e prolongar as sessões com questionamentos repetitivos.
O máximo de vergonha alheia ficou por conta de ex-ministro general Eduardo Pazuello, que, assustado com a convocação e temendo os efeitos que seu despreparo poderá causar, optou por fugir da sessão, alegando que poderia estar “contaminado” pelo vírus. Foi reconvocado, sem que se possa saber se comparecerá ou se continuará em fuga, assustado e com medo.
Também causa extrema vergonha alheia o comportamento do conjunto do governo e particularmente do núcleo mais próximo do presidente da República. Nesse caso, porém, o foco precisa ser ampliado, porque os comportamentos são conscientemente vergonhosos e não causam qualquer constrangimento próprio. Nosso governo está composto por pessoas insensíveis demais para terem vergonha dos atos desatinados que praticam.
Concordo totalmente. Mas me pareceu, no pouco que vi da CPI, que a oposição não se preparou adequadamente para o embate. Não poderiam deixar no ar a sensação de que é uma CPI da vingança ou da retirada do presidente. Muito menos de que é uma CPI petista. É tudo o que o governo quer: que a CPI tenha uma cara petista. Tá faltando intensidade focada da oposição. Como disse o Ruy Castro, tá muita falação, e pouca emoção. Isso esfria e enfraquece a CPI.