O foco do momento ainda é a fuga e a pressa. E medo, sobretudo entre as mulheres. Tropas americanas e de países europeus permanecem no aeroporto de Cabul e a prioridade é a retirada. Não conseguiram impedir o caos e as cenas trágicas de milhares de estrangeiros e afegãos querendo embarcar imediatamente. Nem proteger o entorno do aeroporto de terroristas que querem impedir os embarques. Quando aviões militares não deram conta, o Pentágono convocou jatos de companhias aéreas privadas para transportar de volta a seus países os passageiros levados de urgência para bases americanas do Oriente Médio, sobrecarregadas. Alguns nacionais de países europeus e funcionários da ONU foram, no primeiro momento, levados para o Uzbequistão e o Cazaquistão. Muitos afegãos estão atravessando a fronteira porosa para o Paquistão. Ou fugindo para a Turquia, via Irã, mas o Presidente Erdogan já declarou que não quer ser depósito de refugiados para os europeus e que vai cooperar com o Talibã.
Sob o impacto de relatos assustadores de pessoas resgatadas no meio da noite, da dor pelos que tentaram invadir aviões e morreram pisoteados, da angústia dos que esperam sair nas próximas horas antes que os militares do Ocidente se retirem definitivamente do aeroporto em Cabul, é grande a decepção e são muitas as perguntas.
Por que foi tão rápida a queda do governo que os Estados Unidos apoiavam em Cabul, mal anunciada a retirada final das tropas americanas para 31 de agosto? A previsão do Presidente Biden era de que o governo de Ashraf Ghani, que estava no poder em Cabul desde 2014, se sustentaria ao menos para uma retirada organizada até o 11 de Setembro, quando se comemoram 20 anos do horrendo atentado às Torres Gêmeas. A entrega do governo em Cabul sem resistência aparentemente surpreendeu os líderes do Ocidente. E, no entanto, a sabedoria do olhar sobre o que já se passou nos diz que o otimismo da administração Biden era infundado.
Os donos do poder em Cabul são de novo os talibãs, que pretendem instalar o Emirado Islâmico do Afeganistão. Se bem que já devessem saber que, até agora, comandantes das diversas tribos e clãs do Afeganistão só se uniram contra forças externas de ocupação.
Por que a CIA não sabia o quanto era frágil o governo de Ashraf Ghani? O Presidente Ghani fugiu do país quando os soldados do Talibã já se aproximavam de Cabul, em 18 de agosto, sob suspeita de carregar muito dinheiro. Foi aceito como exilado na UAE (União dos Emirados Árabes) com toda a sua família, oficialmente “por razões humanitárias”.
Só agora somos surpreendidos com notícias de que o Presidente Ghani era considerado tão irrelevante que o Presidente Trump sequer o convidou para suas “negociações de paz” entre os Estados Unidos e o Talibã em 2020, em Doha. Tais negociações levaram ao acordo de fevereiro de 2020 em que os Estados Unidos prometeram retirar suas tropas e as dos aliados até maio de 2021 e o Talibã, por sua vez, se comprometeu a não usar o território afegão para ameaçar a segurança dos Estados Unidos e seus aliados, bem como impedir que seus membros tivessem qualquer atividade que pudesse ameaçar a segurança dos Estados Unidos e seus aliados.
Se é que foram esses os principais termos, é claro que não adiantava chamar o Presidente Ghani para a mesa de negociações em Doha. Com alguma percepção sobre sua popularidade e sua relação com as tropas de ocupação, evidentemente não poderia concordar com a retirada. Mas fica a pergunta: como os Estados Unidos se decidiram pela retirada sem qualquer consulta às pessoas mais diretamente envolvidas nos 20 anos de seu empreendimento? Traição é palavra forte. Mas não terão traído a confiança de milhares e milhares de afegãos, sobretudo as mulheres afegãs, que agora tratam de subir a bordo de qualquer avião? Vale registrar que os aliados europeus tampouco participaram das negociações e do acordo de Doha, cujo ideal, ao menos na retórica, teria sido “terminar a guerra e trazer paz ao Afeganistão”.
O Presidente Biden, na mesma linha de “trazer nossas tropas de volta para casa”, que se tornou de novo popular nos EUA, decidiu cumprir o acordo de retirada negociado pelo Presidente Trump, e marcou o prazo de 31 de agosto. Agora, países europeus e outros aliados, que ainda têm tropas ajudando no Aeroporto e ainda não conseguiram levar de volta todos os seus civis (a exemplo dos que trabalhavam em projetos de desenvolvimento como os da GIZ, a Agência Alemã para a Cooperação Internacional), enfatizam que não foram consultados e pedem extensão do prazo. Já não depende de Biden, como deixou claro um dos porta-vozes do Talibã, Suhail Shaneen, dizendo que um adiamento causaria divisões no Talibã.
Defendendo-se em declarações de 16 de agosto, apesar do horror que se avizinhava, o Presidente Biden ignorou as dúvidas que emergiram sobre o papel dos Estados Unidos como líder do Ocidente: “Nosso único interesse nacional vital no Afeganistão continua sendo hoje o que sempre foi: prevenir um ataque terrorista em solo pátrio americano (preventing a terrorist attack on American homeland).”
E daqui para a frente? Vai voltar um governo da “sharia”, a lei islamista na sua interpretação extrema? O líder talibã Abdul Ghani Baradar, já desde sua participação nas negociações de Doha, prometeu moderação, diz que o grupo procura um sistema islâmico em que todos possam participar sem discriminação. Mas há relatos de violência sectária e ataques a civis em várias partes do país, e ninguém sabe o quanto Baradar tem influência sobre as tribos que compõem o Talibã ou mesmo sobre grupos armados que não são parte do Talibã. Outro porta-voz, Zabinllah Mujahid, recomendou que as mulheres permanecessem em casa, por enquanto, até que o governo se organizasse, “pois os soldados não estão treinados” para tratar respeitosamente as mulheres.
E os refugiados? O Afeganistão já é o terceiro maior gerador de refugiados, depois da Síria e da Venezuela. Há ao menos 2 milhões nos vizinhos Paquistão e Irã. Como receber e integrar, mais uma vez, milhões de refugiados? A ACNUR (ou UNHCR), a agência de refugiados da ONU, de novo faz apelos desesperados por doações, pois há falta de alimentos e remédios em alguns campos de refugiados. Desde o início de 2021 já teriam deixado o país meio milhão de afegãos. Há uma estimativa de que nas operações de retirada desde 14 de agosto já saíram mais de 85.000, realocados em mais de 10 países, sobretudo Estados Unidos, Reino Unido, Itália, Alemanha, França, Paquistão e Turquia.
Por que caiu Cabul? As teorias ainda estão se construindo. Segundo Fareed Zakaria, um colunista do Washington Post dado a hipérbole, culpa da burocracia: tanto o Conselho de Segurança Nacional quanto o Departamento de Estado e o Pentágono fazem tantas reuniões, envolvendo tantos escalões, que não conseguem agir. Não mencionou a CIA e seus quase 22 mil empregados, mas resume: para ser eficaz, o governo americano “precisa parar de se reunir e começar a agir”. Como se fosse possível decidir isso sem mais uma reunião…
Outras análises, baseadas na história, são necessárias, mas demorarão a orientar a ação de curto prazo. Os historiadores registram tentativas fracassadas de ocupação desde a invasão britânica do século 19, a ocupação por tropas soviéticas no século 20, a invasão americana no século 21. “Para o povo afegão, derrotar potências estrangeiras é parte da história nacional”, mostrou Dorrit Harazim (Porta dos fundos, O Globo 15/08/2021, e Caiu por quê?, O Globo 22/08/2021). Quanto a “povo afegão” vale um adendo de Henry Kissinger: o Afeganistão se formou por etnias e clãs de diferentes origens, que resistem à centralização, e só formam uma coalizão contra alguma força externa. (Henry Kissinger on why America failed in Afghanistan, The Economist, 25/08/2021) Essa grande variedade de tribos e etnias divididas entre sunitas (a maioria) e xiitas é também assinalada por Fausto Godoy, diplomata brasileiro que chefiou a delegação brasileira na “Conferência sobre a Reconstrução do Afeganistão”, em Tóquio 2002, e foi embaixador do Brasil no Paquistão e no Afeganistão em 2004 (hoje professor da ESPM). E assim se consegue entender a frase de efeito de um antropólogo que é um bom exemplar da arrogância americana: “O Afeganistão se livrou de ocupantes estrangeiros ao tornar o país tão impossível de governar que eles queriam sair.” (Thomas Barfield, Afghanistan: A Cultural and Political History, Princeton UP 2010).
Mais concreta e imediata é a explicação dos economistas. Os Estados Unidos estão pagando o preço de terem negligenciado a economia afegã. Segundo o Banco Mundial, a renda per capita do Afeganistão está estagnada em 600 dólares há uma década. O economista Jeffrey Sachs mostrou que o dinheiro que os Estados Unidos gastaram no Afeganistão foi quase todo em segurança, quase nada em reconstrução. Além de que a eficácia dos programas foi reduzida pela corrupção, tolerada pelas administrações americanas. Os Estados Unidos gastaram quase 1 trilhão de dólares no Afeganistão entre 2001 e 2021, mais precisamente, 946 bilhões. Desse total, 86% foi para gastos militares com as tropas americanas. Dos 130 bilhões de dólares que restaram, o povo afegão não viu quase nada: 83 bilhões foram para as Forças de Segurança Afegãs, mais 10 bilhões para operações antidroga (que o Afeganistão é sabidamente um grande exportador de ópio), e 15 bilhões para agências americanas operando no Afeganistão. Cito o resumo de Jeffrey Sachs (Blood in the Sand, Project Syndicate, 17/08/2021): “Menos de 2% do gasto dos Estados Unidos no Afeganistão, e provavelmente bem menos de 2%, alcançaram o povo afegão na forma de infraestrutura básica ou serviços de redução da pobreza. Os Estados Unidos poderiam ter investido em água e saneamento, escolas, clínicas, conexão digital, equipamento agrícola e extensão, programas de nutrição, e muitos outros programas para erguer o país de sua privação econômica. Em vez disso, deixam para trás um país em que é de 63 anos de idade a expectativa de vida, a taxa de mortalidade materna é 638 por 100.000 nascimentos, e a taxa de nanismo e subnutrição infantil é 38%.”
Parafraseando Martin Sandbu (comentarista econômico do Financial Times,22/08/2021): preocupados com uma guerra impossível de vencer, os Estados Unidos negligenciaram a paz que era possível construir.
Excepcional análise de Helga sobre o Afeganistão e este fiasco vergonhoso dos EUA, o desmantelo da ocupação e da humilhação com a saída. As grandes potências e, especialmente, os EUA não aprendem que vão sempre fracassar sempre que se metam nos assuntos internos dos países, que querem impor seus valores e culturas. É lamentável a violência praticada pelo talibã, a repressão de uma ditadura religiosa e, mais ainda, as regras tremendas de esmagamento das mulheres. Mas não se pode mudar isso com uma intervenção militar. Vão perder sempre. Mas, o problema é outro, são os interesses geopolíticos em disputa, briga de elefantes que destrói a vegetação, como lembra o ditado africano. Não sei quem financiou e armou o talibã. Parece que uma parte das armas era mesmo dos americanos. Bem feito. Mas, e os russos? Os chineses? Muito bom Helga. A Revista Será deve se orgulhar da publicação desta sua análise. Obrigado. Sérgio
Excelente síntese do vergonhoso desastre!
Valeu.
Além da negligência americana no fomento da economia, os Taleban vem sendo financiados por forças externas que têm interesses em um país sob sua influência. Um dos aliados vencedores é o Paquistão, em detrimento da Índia. Outro é Qatar, que, apesar de sua própria estrutura ocidental, volta e meia financia organizações islamistas, como se o Emir precisasse disso para um absolução de seus pecados no paraíso. Coisa que, aliás, também é uma faceta de Erdogan. Não me surpreenderia, se igualmente o Irã e a Arábia Saudita tivessem seu fundo secreto de financiamento Taleban, porque uma coisa é certa: nenhum dos potentados muçulmanos têm interêsse no sucesso de um „nation building“ que poria em risco sua própria estrutura de domínio. Fato é que depois da „primavera muçulmana“, iniciada na Tunísia, a fala de Obama no Cairo que lhe valeu o prêmio Nobel da Paz, temos hoje não só no Afeganistão uma situação geopolítica pior que antes; países desestabilizados, milhões de refugiados sendo cada vez mais uma ameaça financeira, cultural e política às democracias ocidentais, e um exército de jovens desempregados sem perspectiva de uma vida melhor.
Agradeço todos os comentários, o do mano também. Ainda não tenho claro como a retirada caótica vai afetar os países vizinhos (além da chegada de mais refugiados), o quanto vai abalar as relações entre União Europeia e Estados Unidos, ou com o Reino Unido, e qual será o impacto desestabilizador sobre a ordem mundial supostamente liderada pelos Estados Unidos. Tanto os comentários de Sergio Buarque, quanto os de Claus Koch, vão nesse sentido, do impacto sobre as relações internacionais. Ambos nos ajudam a pensar. Mas admito que não sei como será a “nova geopolítica” e em quem o Talibã poderá se apoiar, até mesmo, de imediato, para importar alimentos. Só tenho, por ora, um fiapo de “wishful thinking”, o de que o Talibã consiga ter a moderação (um mínimo de respeito a direitos humanos?) que prometeu em Doha, que as lideranças que estão prometendo moderação consigam controlar os agrupamentos diversos e se voltem contra o EI. Continuo insistindo que, até agora, o terrorismo islâmico matou muito mais muçulmanos que quem os imames chamam de “infiéis” e que serão os próprios muçulmanos que terão que impor, algum dia na história da humanidade, uma interpretação humanista do Corão e se livrar de seus ditadores. Quando e como funcionaram intervenções armadas?