Pôr de pé uma revista literária no Brasil é sempre uma misto de loucura, que se pode ler como idealismo, e de idealismo, que se pode ler como loucura. Do preço do papel à diagramação, das ilustrações aos textos escolhidos, da seleção de colaboradores à revisão, sem falar na impressão, tudo conspira para potenciais editores desistirem e, dessa forma, antes do sonhado editorial do primeiro número, chegarem a um precoce ponto-final. Imaginem, ainda por cima, se uma revista assim é dedicada a um autor estrangeiro, infelizmente só conhecido de uma certa elite intelectual e artística.
Pois é, Marcel Proust (1871–1922), o legendário e canônico autor de “Em busca do tempo perdido”, acaba de ganhar uma revista só para ele. Proust, à semelhança do Brasil, é imenso e diverso, e por isso há correspondências e razões “secretas” e históricas para essa novidade, aliás tanto mais excelente novidade quanto se sabe que vivemos uma quadra em que a cultura e a memória nacionais estão claramente sob ameaça.
Marcel Proust, desde que se tornou internacionalmente conhecido, ao receber o Prêmio Goncourt, em 1919, tem raízes bem fincadas entre nossos escritores, aí incluídos os nordestinos, a exemplo de Jorge de Lima (autor de um ensaio lúcido e pioneiro), Gláucio Veiga, Otacílio Alecrim, Josué Montello, Aderbal Jurema, Jayme Adour da Câmara, José Lins do Rego, Hermenegildo de Sá Cavalcante, Joaquim Cardozo, Gilberto Macedo, Silvio de Macedo, Gilberto Freyre e Evaldo Coutinho, este último um dos diretores do antigo Proust Clube do Brasil. A crítica Walnice Nogueira Galvão, em seu artigo “Os novos caminhos de Proust”, na “Folha de S.Paulo”, em 7 de julho de 2002, assinala que, entre os anos 1930–1960, todos os grandes críticos brasileiros escreviam sobre Proust, a começar por Antonio Candido, Tristão de Athayde e Sérgio Buarque de Holanda. Bem, a recepção do autor no Brasil é um vasto e fecundo tema: que o digam a tese doutoral de Maria Marta Laus Oliveira, “A recepção crítica da obra de Marcel Proust no Brasil”, e o livro “Proust sob os trópicos: difusão, recepções, apropriações e tradução de Marcel Proust no Brasil (1913–1960)”, de Etienne Sauthier, publicado na França, em 2021, e ainda sem tradução no Brasil.
Agora, Proust ganha um periódico só para ele, reunindo especialistas dispersos na imensidão continental do Brasil. Trata-se de “Intermitências – revista brasileira de estudos proustianos”, lançada no finalzinho do ano passado. Os organizadores da façanha são Carlos Eduardo Souza Queiroz, criador do perfil ProustBrasil nas redes sociais, um jovem e obstinado pesquisador proustiano, paulista ancorado em Itapetininga (SP), e a Professora Dra. Luciana Persice Nogueira-Pretti, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, pesquisadora e tradutora de Proust. Ambos compõem o Conselho Editorial da revista, que também é integrado por outros craques dos estudos proustianos: Alexandre Bebiano de Almeida, Etienne Sauthier, Fillipe Augusto Galeti Mauro, Frederico DeNez Benyam e Phillipe Willemart.
Lançada no ano do sesquicentenário do escritor e às vésperas de outro ano celebrativo, 2022, quando se comemoram os 100 anos de seu falecimento, a “Intermitências” toma seu nome ao próprio homenageado, que chegou a cogitar que o título de sua obra poderia ser “As intermitências do coração”. No editorial, logo fica claro o seu propósito: “[…] manter vivo o conhecido entusiasmo das letras brasileiras por Proust e instigar um número cada vez maior de leitores lusófonos a partirem em busca do tempo perdido”.
Nascida fora do meio acadêmico, a revista proustiana não é nem poderia ser, longe disso, antiacadêmica, mas voltada aos interesses e estudos proustianos onde quer que eles floresçam. Daí a diversidade de suas contribuições e o amplo espectro de seus colaboradores, irmanando a fina flor de acadêmicos e conhecedores de Proust, a exemplo de Alexandre Bebiano, Luciana Persice, Maria Marta Laus Pereira Oliveira, Lêda Tenório da Motta, Phillipe Willemart, Rosa Freire de Aguiar e Mario Sergio Conti (estes dois últimos já engajados numa nova tradução brasileira de “Em busca do tempo perdido”), a nomes de uma nova geração de proustianos espalhados pelas vastidões do País.
Para terminar, é impossível não dizer que a revista está graficamente bela, condizente com a generosidade e o idealismo de seus propósitos. Formato, fontes e ilustrações compõem um conjunto de bom gosto, e isso se deve às Edições Cândido, que tão bem encamparam o projeto, e aos nomes de Carolina Bissuz, Estela Saham, Gilles Diniz e Giuliane de Alencar. Por sua vez, num gesto nobre e à altura do Governo Macron na esfera cultural, a Embaixada da França no Brasil apoiou desde o início todo o projeto editorial. Oxalá continue apoiando! Afinal de contas, “il va sans dire”, Proust é um dos pontos mais altos da universalidade da cultura francesa. No Brasil e no mundo, “Em busca do tempo perdido” é reconhecida como obra de gênio, e nela, como desejou seu autor, “cada leitor é leitor de si mesmo”. “Intermitências”, como publiquei no meu perfil do Instagram (paulogustavo50), chegou pra fazer história. Como devoto proustiano, não posso acrescentar outra coisa a não ser: longa vida a essa história!
Doce loucura.
Kkkk. É isso, amigo!
Valeu.