O sertão nordestino vive, há milênios, com um clima brabo. Uma cíclica interposição de anos de boa chuva e anos de chuvas meio escassas e mal repartidas temporal e espacialmente. E anos de formidáveis secas. Ao longo das vidas, a fome sempre terminava, em terríveis momentos, rondando os habitantes. Os donos da terra, os índios, nômades, sofriam horrores com as grandes secas. Os invasores – portugueses, acreditando-se civilizadores – se depararam com uma característica climática que dava têmpera, pelo que, sobre nativos locais, os descendentes dos donos e dos invasores, Euclides da Cunha assim se manifestou: “o sertanejo é antes de tudo um forte”.

Não tempera o sertanejo o inverno rigoroso, da região setentrional da Europa de onde partiam levas de invasores das regiões meridionais. Estes, com facilidade, deslocavam os estabelecidos em regiões de clima ameno. Para serem séculos depois deslocados pelos que vinham temperados pela dureza dos invernos. Com as oscilações usuais da natureza, as estações nunca são exatamente iguais às anteriores. Eventos extremos, porém, eram raros. O inverno frio tinha tempo de começar e tempo de terminar. Sabia-se quanto havia de guardar de alimento para os tempos improdutivos, previsíveis, de certa forma. Ha! Que diferença das secas. Com frequência menor, mas nada desprezível, vinham as grandes secas interanuais, de imprevisível duração – impossível guardar comida suficiente para todos. Entre os considerados selvagens, ou havia para todos, ou para ninguém. Todos se moviam em busca de água e de alimento. Entre os civilizados, os europeus que chegavam, havia o estatuto da desigualdade. Uns detinham o direito real às terras e ao cobiçado alimento remanescente. Outros, à liberdade de sair por aí. Procurando o que uma boa fração não acharia: as condições de sobrevivência. Chocado com as notícias da mortalidade trazida pela fome no Ceará, o Imperador Pedro II – constatando que não havia mais recursos monetários que lhe fossem disponíveis – proclamou célebre frase:

Se não há mais dinheiro, vamos vender as joias da Coroa. Não quero que um só cearense morra de fome por falta de recursos.

Pura compaixão o levou a cancelar as festividades que celebrariam sua volta de longa viagem ao exterior por conta do desastre cearense? De qualquer forma, cabe lembrar que vez ou outra se ouvia, na região, o ditado “a fome é má conselheira”. Os desorganizados sofredores, registre-se, limitavam-se a invadir armazéns e mercearias. Iam buscar a colheita que a natureza lhes havia cancelado.

No século XX, as grandes secas promoviam o aumento da malha rodoviária pela formação das “frentes de trabalho”, organizadas emergencialmente. Os trabalhadores deslocados de suas atividades rurais suspensas pela seca assim encontravam renda para a própria subsistência e a de suas famílias. As frentes proviam os meios de subsistência, contornando a fome. O Nordeste passou a possuir invejável malha rodoviária. A maior quilometragem de estradas vicinais; nada invejável quanto à qualidade. Na estação das chuvas, quando as havia, viravam extensos lamaçais. Tratava-se de momento quando não passavam retirantes. À notícia do primeiro pingo, haviam voltado imediatamente aos seus locais de origem.

De ouvido no sertão, o referido ditado é mais antigo, também conhecido em Portugal. Lá não havia secas nem rigorosíssimos invernos. Mas, na febre da primeira onda de globalização, havia as viúvas da promessa de riqueza. De três naus que partiam, duas regressavam. E colhiam os frutos da aventura. Mas, eram tantas as mulheres que perdiam os maridos engajados em viagens transoceânicas encerradas com soçobramento. E não havia a esperança do término da seca que animava a vida do faminto sertanejo quando exposto ao flagelo da natureza. Atingidas pela extrema miséria, pagavam o preço do arriscar compartir bom pagamento se tudo desse certo. Tinham a miséria legitimada pelos azares individuais. E aliviada pela afluência dos parentes. E nada adiantava ficar alimentando ódio a Netuno. Ele não estava ao alcance. O ditado, na verdade, veio de ainda mais longe. No espaço, e principalmente no tempo. Da história de Roma, em poemas, Eneida (Livro VI), de Publio Virgilio Maronis, “et malesuada Fames.

No momento atual, o mundo sofre agruras de nova etapa de quatro décadas de outra onda de globalização, em novos moldes tecnológicos. E cenas de fome e vil penúria, em partes da África, permanecem aparentemente esquecidas. Em tal contexto, chama atenção a dantesca cena de fome e penúria em curso no Afeganistão. País que abriga bravo povo asiático de montanhas, que alijou de seu território russos e norte-americanos, estes que agora desastradamente se escafederam, depois do fracasso de uma invasão e uma guerra aparentemente sem sentido – trazendo trágico momento de tragédia humanitária. O Talibã, alvo da invasão, é quem comanda a “salvação”, com retorno a práticas que ferem frontalmente direitos universais, particularmente o das mulheres. País que teve parte de suas terras exposta a uma ainda em vigor seca de proporções e duração inauditas. Mais fome e miséria em região já muito pobre. Ademais, agora paga o preço de bens no exterior congelados, ato supostamente contra os talibãs, mas medida genérica que mata a galinha dos ovos de ouro. Depósitos monetários no exterior, em parte destinados a busca de segurança, bloqueados. A economia em frangalhos, em pleno caos. Com recursos pessoais congelados no exterior, evapora-se o que poderia em parte vir a ser divisa aliviadora da fome. 

Não ganharam o território expulsando os estrangeiros? Sim. Mas a ajuda em termos de armas, através de porosas fronteiras, não se converte em ajuda econômica. Para quem tem recursos pessoais congelados, quem é o culpado deste novo momento de mais fome e penúria? Parte desses podem identificar o culpado de sua situação individual como o que retém suas reservas. Mesmo entre os que são oponentes ao Talibã, que voltou a governar a terra conquistada, há quem veja como culpado um infiel, e inimigo. Diferentemente dos nordestinos de séculos de periódicas secas, que as sabem vir da natureza, assim como das viúvas de Portugal que podiam atribuir a Netuno suas terríveis penúrias, os afegãos agora expostos a terrível fome e vil penúria não vêm a natureza ou forças sobrenaturais para onde dirigir os maus conselhos. As secas extremas, mudanças de padrão de comportamento do clima são atribuídas, pela mídia, aos desenvolvidos ocidentais. Um corte de visão de mundo, de cultura e de crenças se soma, se insere no contexto. Não é bom para ninguém no mundo que aumento de insegurança se some a outros males. Então, além da comiseração, percebe-se (sentimos?) a tragédia deste quadro de formação de maus conselhos dados pela fome e pela vil penúria.

Talvez a culpa venha ser, em última instância, de Júlio César. Conquistou as terras anglo-saxônicas, mas vacilou e voltou. Não deixou a marca da civilização romana. Tivesse tido mais empenho talvez a Eneida fosse mais lida naquelas terras. E pelos hegemônicos filhos setentrionais do Novo Mundo. E houvesse mais cuidado em evitar que a má conselheira extrema fome e a vil penúria se instalassem em territórios perdidos em luta. Ou sem luta. Será?